14 março 2008

Crônica poética do tempo



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(Apresentação de livro de Idalina da Silva Azevedo Tempo físico)

“O pensamento é que lê o escondido” p. 168
“Toda obra de arte inventa o vazio” p. 185
“Não se entendem os mistérios. Se vive, e pronto” p. 227


Idalina Azevedo da Silva é uma assinalada. E os sinais que ela traz são de pura e fina poesia. Apreciá-los só degustando-os. Para tanto é necessário deixar o tempo ser o próprio alimento, um alimento poético. Numa degustação rápida de leitura, o leitor se vê envolvido com o curso e o percurso de Maria, sua infância e adolescência, sua fase adulta e finalmente a experienciação mais palpável de que é uma peregrina no tempo, pelo advento da morte de muitos daqueles que constituíram seu mundo. Se ficasse aí não haveria muita novidade, pelo contrário isso se torna o previsível para cada um de nós. Porém, aí não passamos ainda do tempo cronológico. Mas há outros. E estes estão nos interstícios da sua obra, convidando e provocando os leitores mais exigentes, que queiram um alimento mais substancial. Então é necessário estarem atentos aos sinais. É que no Tempo físico a vida vivida se tornou uma profunda experienciação de vida. E é essa experienciação que ela quer dividir com os leitores atentos. Como a própria Maria, a personagente, nos diz: “O pensamento é que lê o escondido”. Pensar é deixar acontecer no ordinário o extraordinário. Procurar ler esse escondido e extraordinário que há nela foi a tarefa que se deu. Mas para isso é necessário se abrir para o pensamento e é a ele que Maria procura ler ao nos contar a sua estória, pois ela quer compartilhar esse escondido, esse extraordinário.
Compartilhar é a palavra-chave, pois não se trata de uma narrativa memorialística, como num primeiro momento possa parecer. Já bem jovem toma consciência de que pulsa nela o viço de escritora. E então o destino lhe assinala o seu quinhão. Leitora voraz de ficção toma contato com obras de Kafka. E a realidade deixa de ter seu aparente curso normal e lógico. Há o escondido. O que é? É aí que sua crônica poética mostra todo o seu poder criativo. Se Kafka desde jovem a abriu para as faces ocultas da realidade, ela terá um outro encontro marcado pelo destino, ver essas mesmas faces ocultas pela provocação da poesia inaugural de Hölderlin. Idalina irá estudar alemão na Alemanha e depois irá conviver longamente com a obra de Hölderlin, de que resultará sua tese de doutorado. Desta convivência com obras de arte densas e fundamentais não resultou nenhuma cópia repetidora esmaecida. Pulsou vivo em seu ser o desafio de ser arte, de fazer da vida uma obra de arte. Toda obra de arte inventa o vazio, diz Maria. Inventar o vazio, haverá maior desafio para cada um de nós, leitores? Mas não se trata de uma existencialista fora do tempo. Pelo contrário, ela mergulha fundo nesse vazio, para dele surgir a plenificação da vida. É o que Maia também nos diz: “Não se entendem os mistérios: se vide, e pronto”. Atravessada pelo mistério do sagrado é que vamos poder percorrer a vida de Maria. É o seu destino. Ela se sabe assinalada pelo sagrado e deste sua vida será a manifestação. E então vamos ter uma Maria de muitos nomes, com muitas personagentes. Depende do momento e do lugar. Dona Fada será o seu espelho e outras. Se o leitor quiser saber qual é o grande tema desta crônica poética eu diria que consiste no tentar mostrar os fios escondidos do sagrado tecendo não só a vida de cada um, mas também da história. E então aparece uma personagente – Maria - múltipla, aberta, pura doação e amor aos familiares, aos amigos, aos seres humanos, a todos sem distinção ou credo político ou religioso, pois “no amor não há diferenças étnicas”. Este traço fundamental não é uma idéia abstrata. Ele se faz presente na narrativa em dois mundos que aos poucos se vão completando e fundindo. É o mundo da família e o mundo social. Para o primeiro seu espelho será a mãe e para o segundo será seu pai, um humanista impulsionado pela utopia de um comunismo aberto e fraterno. Eles se encarnam nela e faz deles a sua arte, o seu modo de ser. É seu modo de inventar o vazio, essa possibilidade de todas as nossas possibilidades. Mas ó vivendo-o e fazendo da vida uma festa. Esses dois núcleos iniciais e locais vão sofrendo uma expansão e transformação, mas jamais serão abandonados. Primeiro, ao fazer o curso superior na capital do estado. Depois viajando para a Europa. E então sua família são os seres humanos e seu mundo é o mundo, porque mais importante do que as diferenças culturais são a doação e o amor. Sua presença, seja nas mais situações mais adversas, será sempre um gesto de bondade, uma palavra de iluminação.
Maria sabe que no escondido da vida há sempre muitas Marias como uma única e sempre presente: a mãe-mulher. Fugindo de todos os “ismos”, como quem sabe de só de experiência feita que a vida é a própria mãe-mulher, ela se torna uma mulher libertária da própria mulher. Eis uma nova faceta desta crônica poética. Deve o leitor, porém, não deixar passar despercebida uma faceta essencial e aparentemente banal e secundária. A profunda ligação de Maria com a Terra. De um lado ela acompanha sempre com atenção e entusiasmo as mudanças das estações, a dança da Terra. De outro, sabedora dessa nossa profunda ligação com nossa mãe originária, fonte de toda vida, ela se deixa completamente envolver pela arte culinária. Nela e por ela experiência a vida em seu sabor e saber. Nela se dá a confluência de mundo e terra. Então o tempo mais do que puramente biográfico e cronológico é poético, é Tempo físico.

A via-sacra do poético-sagrado



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(Apresentação do livro de poemas de Helena Parente Cunha: Caminhos de quando e além)

Há sempre o perigo de a apresentação ter a pretensão de dar conta, no apresentado, do que poeticamente se faz presente na obra. Mas o que se presenteia poeticamente não pode ser apresentado, apenas experienciado pela abertura para a escuta do vigor da fala da poesia na obra.
A apresentação deve recolher-se à simplicidade de ser uma entre muitas possíveis e desejáveis escutas, tornando-se uma convocação para a disposição de ausculta do que em Caminhos de quando e além vigora como fala do silêncio. Escutar a voz do silêncio da obra eis o desafio, que uma apresentação não pode nem pretende substituir. O intuito da presente apresentação é esse e nenhum outro.
É evidente que são os poemas que fazem o poeta, assim como é a poesia que faz tanto o poeta como os poemas. Helena Parente Cunha é poeta porque nela acontece um deixar-se tomar profundo pela fala da poesia. Os gregos chamaram um tal deixar-se tomar de entusiasmo. Mais recentemente, entre nós, G. Rosa denominou-o: pacto, o pacto sacro-amoroso. Não pense o leitor que tudo se resolve num simples transe. Como então as coisas seriam fáceis! Não são. Elas sempre são ambíguas, sorrateiras, dissimuladas, denegadoras. Transitam na proximidade. Querem o assédio e amam a proximidade, tanto mais se presenteando quanto mais se ausentam. Experienciando tal paradoxo é que chegamos a ser o que somos, dolorosamente. Dessa disputa poética vive a fala poética de Helena Parente Cunha. E nisso e por isso ela é poeta. À escuta dessa disputa poética nos provocam os poemas que só aparentemente são dela, porque ela só aparece e fala para deixar a poesia parecer e falar.
Nessa caminhada poético-angustiante e paradoxal de proximidade e distância se escreve e inscreve a via sacra das 48 Estações de Caminhos de quando e além. Seu itinerário poético é angustiante porque, de um lado, se vê e sente profundamente assediada pela volúpia das palavras, de que surge uma sombra de culpa, porque então palavra não é o uso retórico do bem e bom falar, nisso consistindo a possível culpa, de outro, sabe que a palavra é o poder fazer aparecer e manifestar da própria poesia. Palavra é o apelo apaixonado do que inconscientemente ou não nos atrai. Palavra é paixão culposa, porque não há como corresponder a não ser respondendo nas falas das escutas aproximantes dos poemas. Então falamos para nos escutar, não a nós, mas ao que em nós se faz fala de proximidade aliciante, envolvente, silenciosa. Tão forte é esta fala que em muitas das Estações é a própria poesia que se dirige a nós, numa abertura profunda de se deixar atravessar pela poesia e de nos levar a experiênciá-la também na sua presença vigorosa, que supere nossa resistência voluntariosa. Preste o leitor atenção. Se há culpa também há o arrependimento e nesse jogo ambíguo se faz o longo caminho em direção ao sagrado. Não é um arrependimento falaz e falacioso. São paragens e passagens de auto-escuta e auto-diálogo num lento e doloroso progredir. Mas progredir em direção a onde e a quê? No quando de tempo e espaço, em todos os tempos e espaços, um dirigir-se ao além. Então a poesia se torna destino. E ao longo das Estações poesia e destino se entretecem como escrita de caminhada em direção ao encontro marcado. Nisso o destino é a força ao mesmo tempo poética e de auto-realização enquanto descoberta e completude do e no sagrado. É uma pro-cura e descoberta angustiante da vida no que a vida tem de sobrevida e subvida, com idas e vindas, titubeios e desvios, errâncias e aparências, prazeres fáceis e passageiros, tristezas e alegrias.
Isso gera uma grande perplexidade que se vai refletir, naturalmente, na configuração de cada Estação e da obra como um todo.
Uma condição fundamental – entre outras -, para o leitor de poesia, é deter-se nas palavras e deixá-las ir atuando e crescendo dentro de nós, para nos conduzirem para o que em nós é latente. Nesse sentido, o título já traz as grandes linhas temáticas que configuram a obra. Claro, com múltiplos e possíveis desdobramentos interpretativos. Caminhos são as vias e os desvios que acontecem no tempo, daí o “quando”. Mas, certamente, a palavra mais importante é “além”. Que “além” é este? Qualquer resposta vai depender das experienciações que surgirem, para o leitor, dos caminhos que na obra se caminham. Estes são um apelo poético que depende da escuta que cada um faz de uma sina e de um destino. Porém, eles se dão no tempo. Que tempo? Esta é a questão central prévia desta obra, que irá preparar o que nela se propõe como “além”.
No encaminhamento da questão do tempo é que, na configuração da obra, aparecem múltiplas dificuldades para o leitor que estiver acostumado só com a linearidade temporal. O tempo que preside a feitura da obra interpreto-o como memória. Para que o leitor acompanhe minha leitura é necessário uma pequena reflexão, não sobre, mas num diálogo com a memória. Memória é mais do que lembrança e esquecimento. Ela é o cuidado do uno, o uno para o qual a Estação 48 aponta. Contudo, o uno não é um resultado final. É o começo levado à plenitude. A foz do rio no encontro com o mar traz em si e no seu percurso, permanentemente, a fonte. O futuro do rio, nas suas caminhadas – primeira questão da obra – já está no passado da fonte. Se pensarmos o percurso do rio como a unidade de três contínuos e unidos momentos do tempo: o presente enquanto tensão de passado e futuro, então a memória é a memória poética desses três momentos. O que Helena fez? Deixou-se tomar pela memória poética e os três momentos temporais comparecem simultaneamente, não como lembranças de um passado evocado narrativamente, mas concreta e vivencialmente presentes na determinação das caminhadas dos caminhos. De algum modo o “além” já pode ser lido no horizonte da memória poética. O leitor, aberto para estas possibilidades, que exigem uma desautomatização no seu modo de ler e ser, passará a dialogar mais densamente com a fala de cada poema. A simultaneidade acontece nos versos de uma Estação e é relativa a diferentes aspectos da realidade:

Decretos em pergaminhos desenrolam mensagens de quando.
Rolos de papiro e papel couché, telas de videoclipe...
(Estação 2)

As mensagens, enquanto o destino cifrado, não estão só em papiros e pergaminhos, num antigo tempo linear. Não. Elas continuam presentes do mesmo modo para nós, hoje, agora, no “papel couché”, nas “telas de videoclipe...”. Para o leitor uma reflexão sobre o destino é fundamental, pois é uma das pilastras em que se funda a obra. Mas o seu entendimento é complexo e amplo. Talvez o destino se confunda, na obra, com a própria memória poética.

Meus comandos estão gravados nos pergaminhos, nos papiros,
Nas pedras das cavernas, nas inscrições rupestres,
Nas telas dos computadores e nas infovias que levam mensagens
E imagens instantâneas para o planeta.
(Estação 6)

Como vemos o destino não é algo antigo e mitológico. Por isso, o “começo” de que nos fala o Prólogo

Agora é o começo,
de que começo é agora?

não é algo historiográfico ou cultural. É o “começo” enquanto memória poética. Na poesia se encontra a senha para o desvelamento do destino? Cabe a cada leitor ler e estar atento para essa questão.
A mesma simultaneidade, evocando outras ressonâncias, se dá na presença de Princesa, Infante, príncipe, Rei, mitos (“carreguei noite e dia a pedra que rolava na encosta” (Estação 6), guerreiros etc. Essas referências não querem ser, assim penso, representações, mas sintomas do que permanece. A memória poética é um traço forte e fundamental que se faz presente em cada Estação e determinante das Estações entre si. Daí uma obsessiva reiteração de certas imagens em diferentes Estações. É uma reiteração que não é falta de estilo ou inspiração, mas a proposta de um desafio poético: numa Estação ressoarem todas as demais e todas constituírem uma Estação, porque a referência pronominal de um eu, um tu, um nós, é, no fundo, a referência ao humano. Porém, para entender isto só deixando a palavra poética enquanto memória poética se presentificar como fonte e foz, começo e fim. Cabe ao leitor experienciar. É uma questão e as questões é que nos têm. Sobre elas não dá para falar. Só falando e pensando com elas e a partir delas.
Neste apelo, surge uma outra dificuldade para a leitura que se quer sempre dialogal: a obra propõe-se como um grande diálogo com outras obras e textos. Mais diretamente com o Cancioneiro de Fernando Pessoa. Não se trata apenas da intertextualidade, onde aparecem as referências a outras obras. Como memória poética, há também uma hipotextualidade, onde quem fala é sempre o mesmo. Isto não quer dizer que diga sempre as mesmas coisas, porque à fala deve corresponder uma escuta. O importante é perceber que há sempre o apelo do mesmo. Que mesmo é este? Para Helena, enquanto “Caminhos do quando” nos manifesta o “além”.

Ainda não sabes nem sabeis quem é o rei que te e vos enviou?
(Estação 47).

Eu, você, leitor todos nós devemos constatar:

A caminhada é caminho de muitos degraus e subidas e idas
e paradas e recuadas e descidas e mais subidas e enfim o fim do trajeto
em ser a chegada do retorno à casa do pai.
(Estação 47).
E conclui:

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 47)

O diálogo hiper e hipotextual não pode ser visto como algo que de fora vem determinar o que cada um é no como é de sua caminhada. Há o destino – uma diretriz fundamental e presente da obra que não é a determinação passiva e prévia do que cada um é. O destino onipresente na obra é muito mais uma provocação de escuta. Mas para haver escuta temos que identificar as vozes. Este poder identifica as vozes é que é o destino. Há pessoas que nunca escutam o que escutamos. Que vozes falam como destino? Como saber? Só cada um sabe, quando se decide pela auto-escuta.
O que é auto-escuta? Ela é um dos traços mais fortes e complexos na constituição da obra. É a outra faceta da memória poética. Nela não há apenas uma mera referência simultânea a presente e passado, projetando um futuro. A referência é radicalmente refundida a partir da auto-escuta. Quando falamos em diálogo devemos distinguir o diálogo com o outro (hétero-diálogo) e o diálogo consigo mesmo (auto-diálogo). Partem do mesmo, a linguagem, mas são diferentes. Em todo diálogo trata-se sempre de fala e escuta. Há sempre um eu e um tu como afirmação de uma identidade e uma diferença. Esta diferença é dupla: no tu que são os outros e no tu de cada eu (porque, cada um de nós é, ao mesmo tempo, eu e tu, isto é, sou e não-sou). Quando na Estação 47 se dá a união de anima e animus, de Princesa e Infante, acontece finalmente o auto-diálogo, onde em união dialogal eu e tu se apropriam do que é próprio, configurado na união como doação do mesmo.
Para tentar compreender isto melhor é fundamental estar atento à percepção e experienciação do auto-diálogo como a união do eu e do tu, de Princesa e Infante. Isso pressupõe que a união só acontece porque a precede uma diferença. Ao longo das Estações, os dois diálogos (auto e hétero), na suas múltiplas facetas e diferentes experienciações acontecem ao mesmo tempo, quer dizer, de uma maneira simultânea e sucessiva. Isto dá uma densidade inaugural à obra, mas a torna extremamente difícil, porque exige uma longa e paciente caminhada de encontro com o outro e do encontro consigo mesmo, como escuta da fala do mesmo. Este mesmo é o “além”? Vai depender da escuta das falas que em cada um falam:

Na alquimia da imponderável transmutação,
Onde Rei e Rainha se espelham,
Unem-se dois na unidade do elo ele e ela.
(Estação 48)

O mesmo, o “além”, reúne não apenas eu e tu, Princesa e Infante, masculino e feminino, Rei e Rainha, mas o humano do homem. Então nessa Princesa e nesse Infante, estamos eu, você leitor, poeta, enfim, todos nós. E não apenas nós, hoje, vivos. Não. Na obra enquanto memória poética é o humano do homem que comparece, o humano da aventura, desventura e ventura humana. Se o leitor auscultar em todas as falas e nas nomeações pronominais essa procura do humano, o longo poema se manifesta numa simultaneidade de diferenças pessoais, culturais, temporais, históricas. Implicitamente, o humano se constitui nos multifacetados diálogos, porque estes são a poesia se fazendo memória poética. Nesta perspectiva, o humano é o poético da memória que cada um realiza na sua caminhada e destino. E, como memória poética, são os diálogos, enquanto obra de arte, que nos conduzem, em nossas caminhadas, ao próprio, isto é, ao mesmo, de animus e anima, de diferença e identidade, de proximidade e distância, de verdade e não-verdade, de sou e não-sou. O humano se torna obra-de-arte porque se deixa atravessar e possuir no e pelo diálogo. Cada um chegado à “unidade do elo ele e ela” (Estação 48), de sou e não-sou

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 48)

A “folha em branco do livro” é o “além”?
As múltiplas dificuldades que surgem na leitura se tornam para o leitor um desafio de, fazendo uma leitura de dentro de si, acordando o que está adormecido, percorrer a sua via sacra enquanto demanda do sagrado, do “além”.
A obra como um todo se constitui um grande círculo, onde o começo é o fim e o fim é o começo, unindo o Prólogo e a última Estação:

Agora é o começo,
de que começo é agora?
(Prólogo)

Alfa eÔmega recomeçam o incessante começar
Que não tem começo nem fim.
(Estação 48)

Imagine o leitor em grande vitral circular onde do centro partem quarenta e oito raios: são as Estações. Estas, na unidade do círculo, se entre-irradiam, compondo um vivo, poético e abismal vitral. Temos aí a sucessividade e simultaneidade, o mesmo no círculo do Alfa e no do Ômega. No entre-circular estão os Caminhos de quando e além. Lançados nesse “entre”, temos que cumprir nossos destinos. É um destino que se dá no entre enquanto caminhada de travessia.

Enquanto escreves, dormes, enquanto dormes, caminhas,
enquanto caminhas, vives e revives mortes e martírios,
idas e vindas de vidas idas e esquecidas.
(Estação 35)

Mas em cada um acontece o círculo:

Buscais tesouros imersos em alguma Atlântida ignorada,
quando tudo gira ao redor de vossa coluna vertebral
e no quadrado de vossos olhos e mãos.
(Estação 26)

A forma nada diz se o silêncio não fingir a figura e ditar a voz. É neste entre silêncio e fala que se dá a obra.

Entre o sono e o sonho / entre mim e o que em mim /
é o quem eu me suponho, / corre um rio sem fim.
(Estação 32, 38)

Por isso, a obra opera a partir do entre enquanto diálogo e espelho:

Na alquimia da imponderável transmutação,
onde Rei e Rainha se espelham...
(Estação 48)

Mas esse “Rei e Rainha” são o animus e a anima, a identidade e a diferença. Por isso, o realizar os diálogos é proceder ao espelhar-se pelo qual chegamos à unidade do mesmo. Ao lado da questão do destino, talvez a questão do espelho seja igualmente a mais permanente e profunda. Mas esta questão não é só desta obra, mas da poética de Helena Parente Cunha. Lembre-se apenas sua obra Mulher no espelho. O espelho não é algo ao lado da mulher, é um entre que caminha tanto mais para ela quanto mais adentra o homem, ou nas palavras de Helena, tanto mais é anima quanto mais é animus. É a permanente diferença procurando a identidade. Nesse sentido, a leitura atenta das Estações nos mostraria um mergulhar poético-abismal de busca de luz do que na mulher é mulher, pois Helena é uma sensível escuta do que nela é mulher. Não mulher gênero, algo genérico. Mas o humano da mulher, porque toda mulher é mulher do e no humano. E o humano é humano enquanto demanda do poético-sagrado. E trazer “isso” para a linguagem, para a poesia é o grande desafio de sua poética. Não será esta a via sacra desta obra nas 48 Estações? Não será “esta” a sua via sacra, a demanda do sagrado enquanto poesia e da poesia enquanto o humano do homem, o “além”?

Manuel Antônio de Castro
Manuel Antônio de Castro

Há sempre o perigo de a apresentação ter a pretensão de dar conta, no apresentado, do que poeticamente se faz presente na obra. Mas o que se presenteia poeticamente não pode ser apresentado, apenas experienciado pela abertura para a escuta do vigor da fala da poesia na obra.
A apresentação deve recolher-se à simplicidade de ser uma entre muitas possíveis e desejáveis escutas, tornando-se uma convocação para a disposição de ausculta do que em Caminhos de quando e além vigora como fala do silêncio. Escutar a voz do silêncio da obra eis o desafio, que uma apresentação não pode nem pretende substituir. O intuito da presente apresentação é esse e nenhum outro.
É evidente que são os poemas que fazem o poeta, assim como é a poesia que faz tanto o poeta como os poemas. Helena Parente Cunha é poeta porque nela acontece um deixar-se tomar profundo pela fala da poesia. Os gregos chamaram um tal deixar-se tomar de entusiasmo. Mais recentemente, entre nós, G. Rosa denominou-o: pacto, o pacto sacro-amoroso. Não pense o leitor que tudo se resolve num simples transe. Como então as coisas seriam fáceis! Não são. Elas sempre são ambíguas, sorrateiras, dissimuladas, denegadoras. Transitam na proximidade. Querem o assédio e amam a proximidade, tanto mais se presenteando quanto mais se ausentam. Experienciando tal paradoxo é que chegamos a ser o que somos, dolorosamente. Dessa disputa poética vive a fala poética de Helena Parente Cunha. E nisso e por isso ela é poeta. À escuta dessa disputa poética nos provocam os poemas que só aparentemente são dela, porque ela só aparece e fala para deixar a poesia parecer e falar.
Nessa caminhada poético-angustiante e paradoxal de proximidade e distância se escreve e inscreve a via sacra das 48 Estações de Caminhos de quando e além. Seu itinerário poético é angustiante porque, de um lado, se vê e sente profundamente assediada pela volúpia das palavras, de que surge uma sombra de culpa, porque então palavra não é o uso retórico do bem e bom falar, nisso consistindo a possível culpa, de outro, sabe que a palavra é o poder fazer aparecer e manifestar da própria poesia. Palavra é o apelo apaixonado do que inconscientemente ou não nos atrai. Palavra é paixão culposa, porque não há como corresponder a não ser respondendo nas falas das escutas aproximantes dos poemas. Então falamos para nos escutar, não a nós, mas ao que em nós se faz fala de proximidade aliciante, envolvente, silenciosa. Tão forte é esta fala que em muitas das Estações é a própria poesia que se dirige a nós, numa abertura profunda de se deixar atravessar pela poesia e de nos levar a experiênciá-la também na sua presença vigorosa, que supere nossa resistência voluntariosa. Preste o leitor atenção. Se há culpa também há o arrependimento e nesse jogo ambíguo se faz o longo caminho em direção ao sagrado. Não é um arrependimento falaz e falacioso. São paragens e passagens de auto-escuta e auto-diálogo num lento e doloroso progredir. Mas progredir em direção a onde e a quê? No quando de tempo e espaço, em todos os tempos e espaços, um dirigir-se ao além. Então a poesia se torna destino. E ao longo das Estações poesia e destino se entretecem como escrita de caminhada em direção ao encontro marcado. Nisso o destino é a força ao mesmo tempo poética e de auto-realização enquanto descoberta e completude do e no sagrado. É uma pro-cura e descoberta angustiante da vida no que a vida tem de sobrevida e subvida, com idas e vindas, titubeios e desvios, errâncias e aparências, prazeres fáceis e passageiros, tristezas e alegrias.
Isso gera uma grande perplexidade que se vai refletir, naturalmente, na configuração de cada Estação e da obra como um todo.
Uma condição fundamental – entre outras -, para o leitor de poesia, é deter-se nas palavras e deixá-las ir atuando e crescendo dentro de nós, para nos conduzirem para o que em nós é latente. Nesse sentido, o título já traz as grandes linhas temáticas que configuram a obra. Claro, com múltiplos e possíveis desdobramentos interpretativos. Caminhos são as vias e os desvios que acontecem no tempo, daí o “quando”. Mas, certamente, a palavra mais importante é “além”. Que “além” é este? Qualquer resposta vai depender das experienciações que surgirem, para o leitor, dos caminhos que na obra se caminham. Estes são um apelo poético que depende da escuta que cada um faz de uma sina e de um destino. Porém, eles se dão no tempo. Que tempo? Esta é a questão central prévia desta obra, que irá preparar o que nela se propõe como “além”.
No encaminhamento da questão do tempo é que, na configuração da obra, aparecem múltiplas dificuldades para o leitor que estiver acostumado só com a linearidade temporal. O tempo que preside a feitura da obra interpreto-o como memória. Para que o leitor acompanhe minha leitura é necessário uma pequena reflexão, não sobre, mas num diálogo com a memória. Memória é mais do que lembrança e esquecimento. Ela é o cuidado do uno, o uno para o qual a Estação 48 aponta. Contudo, o uno não é um resultado final. É o começo levado à plenitude. A foz do rio no encontro com o mar traz em si e no seu percurso, permanentemente, a fonte. O futuro do rio, nas suas caminhadas – primeira questão da obra – já está no passado da fonte. Se pensarmos o percurso do rio como a unidade de três contínuos e unidos momentos do tempo: o presente enquanto tensão de passado e futuro, então a memória é a memória poética desses três momentos. O que Helena fez? Deixou-se tomar pela memória poética e os três momentos temporais comparecem simultaneamente, não como lembranças de um passado evocado narrativamente, mas concreta e vivencialmente presentes na determinação das caminhadas dos caminhos. De algum modo o “além” já pode ser lido no horizonte da memória poética. O leitor, aberto para estas possibilidades, que exigem uma desautomatização no seu modo de ler e ser, passará a dialogar mais densamente com a fala de cada poema. A simultaneidade acontece nos versos de uma Estação e é relativa a diferentes aspectos da realidade:

Decretos em pergaminhos desenrolam mensagens de quando.
Rolos de papiro e papel couché, telas de videoclipe...
(Estação 2)

As mensagens, enquanto o destino cifrado, não estão só em papiros e pergaminhos, num antigo tempo linear. Não. Elas continuam presentes do mesmo modo para nós, hoje, agora, no “papel couché”, nas “telas de videoclipe...”. Para o leitor uma reflexão sobre o destino é fundamental, pois é uma das pilastras em que se funda a obra. Mas o seu entendimento é complexo e amplo. Talvez o destino se confunda, na obra, com a própria memória poética.

Meus comandos estão gravados nos pergaminhos, nos papiros,
Nas pedras das cavernas, nas inscrições rupestres,
Nas telas dos computadores e nas infovias que levam mensagens
E imagens instantâneas para o planeta.
(Estação 6)

Como vemos o destino não é algo antigo e mitológico. Por isso, o “começo” de que nos fala o Prólogo

Agora é o começo,
de que começo é agora?

não é algo historiográfico ou cultural. É o “começo” enquanto memória poética. Na poesia se encontra a senha para o desvelamento do destino? Cabe a cada leitor ler e estar atento para essa questão.
A mesma simultaneidade, evocando outras ressonâncias, se dá na presença de Princesa, Infante, príncipe, Rei, mitos (“carreguei noite e dia a pedra que rolava na encosta” (Estação 6), guerreiros etc. Essas referências não querem ser, assim penso, representações, mas sintomas do que permanece. A memória poética é um traço forte e fundamental que se faz presente em cada Estação e determinante das Estações entre si. Daí uma obsessiva reiteração de certas imagens em diferentes Estações. É uma reiteração que não é falta de estilo ou inspiração, mas a proposta de um desafio poético: numa Estação ressoarem todas as demais e todas constituírem uma Estação, porque a referência pronominal de um eu, um tu, um nós, é, no fundo, a referência ao humano. Porém, para entender isto só deixando a palavra poética enquanto memória poética se presentificar como fonte e foz, começo e fim. Cabe ao leitor experienciar. É uma questão e as questões é que nos têm. Sobre elas não dá para falar. Só falando e pensando com elas e a partir delas.
Neste apelo, surge uma outra dificuldade para a leitura que se quer sempre dialogal: a obra propõe-se como um grande diálogo com outras obras e textos. Mais diretamente com o Cancioneiro de Fernando Pessoa. Não se trata apenas da intertextualidade, onde aparecem as referências a outras obras. Como memória poética, há também uma hipotextualidade, onde quem fala é sempre o mesmo. Isto não quer dizer que diga sempre as mesmas coisas, porque à fala deve corresponder uma escuta. O importante é perceber que há sempre o apelo do mesmo. Que mesmo é este? Para Helena, enquanto “Caminhos do quando” nos manifesta o “além”.

Ainda não sabes nem sabeis quem é o rei que te e vos enviou?
(Estação 47).

Eu, você, leitor todos nós devemos constatar:

A caminhada é caminho de muitos degraus e subidas e idas
e paradas e recuadas e descidas e mais subidas e enfim o fim do trajeto
em ser a chegada do retorno à casa do pai.
(Estação 47).
E conclui:

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 47)

O diálogo hiper e hipotextual não pode ser visto como algo que de fora vem determinar o que cada um é no como é de sua caminhada. Há o destino – uma diretriz fundamental e presente da obra que não é a determinação passiva e prévia do que cada um é. O destino onipresente na obra é muito mais uma provocação de escuta. Mas para haver escuta temos que identificar as vozes. Este poder identifica as vozes é que é o destino. Há pessoas que nunca escutam o que escutamos. Que vozes falam como destino? Como saber? Só cada um sabe, quando se decide pela auto-escuta.
O que é auto-escuta? Ela é um dos traços mais fortes e complexos na constituição da obra. É a outra faceta da memória poética. Nela não há apenas uma mera referência simultânea a presente e passado, projetando um futuro. A referência é radicalmente refundida a partir da auto-escuta. Quando falamos em diálogo devemos distinguir o diálogo com o outro (hétero-diálogo) e o diálogo consigo mesmo (auto-diálogo). Partem do mesmo, a linguagem, mas são diferentes. Em todo diálogo trata-se sempre de fala e escuta. Há sempre um eu e um tu como afirmação de uma identidade e uma diferença. Esta diferença é dupla: no tu que são os outros e no tu de cada eu (porque, cada um de nós é, ao mesmo tempo, eu e tu, isto é, sou e não-sou). Quando na Estação 47 se dá a união de anima e animus, de Princesa e Infante, acontece finalmente o auto-diálogo, onde em união dialogal eu e tu se apropriam do que é próprio, configurado na união como doação do mesmo.
Para tentar compreender isto melhor é fundamental estar atento à percepção e experienciação do auto-diálogo como a união do eu e do tu, de Princesa e Infante. Isso pressupõe que a união só acontece porque a precede uma diferença. Ao longo das Estações, os dois diálogos (auto e hétero), na suas múltiplas facetas e diferentes experienciações acontecem ao mesmo tempo, quer dizer, de uma maneira simultânea e sucessiva. Isto dá uma densidade inaugural à obra, mas a torna extremamente difícil, porque exige uma longa e paciente caminhada de encontro com o outro e do encontro consigo mesmo, como escuta da fala do mesmo. Este mesmo é o “além”? Vai depender da escuta das falas que em cada um falam:

Na alquimia da imponderável transmutação,
Onde Rei e Rainha se espelham,
Unem-se dois na unidade do elo ele e ela.
(Estação 48)

O mesmo, o “além”, reúne não apenas eu e tu, Princesa e Infante, masculino e feminino, Rei e Rainha, mas o humano do homem. Então nessa Princesa e nesse Infante, estamos eu, você leitor, poeta, enfim, todos nós. E não apenas nós, hoje, vivos. Não. Na obra enquanto memória poética é o humano do homem que comparece, o humano da aventura, desventura e ventura humana. Se o leitor auscultar em todas as falas e nas nomeações pronominais essa procura do humano, o longo poema se manifesta numa simultaneidade de diferenças pessoais, culturais, temporais, históricas. Implicitamente, o humano se constitui nos multifacetados diálogos, porque estes são a poesia se fazendo memória poética. Nesta perspectiva, o humano é o poético da memória que cada um realiza na sua caminhada e destino. E, como memória poética, são os diálogos, enquanto obra de arte, que nos conduzem, em nossas caminhadas, ao próprio, isto é, ao mesmo, de animus e anima, de diferença e identidade, de proximidade e distância, de verdade e não-verdade, de sou e não-sou. O humano se torna obra-de-arte porque se deixa atravessar e possuir no e pelo diálogo. Cada um chegado à “unidade do elo ele e ela” (Estação 48), de sou e não-sou

Na folha em branco do livro,
se grava o traço firme da ancestralidade na projeção da descendência.
(Estação 48)

A “folha em branco do livro” é o “além”?
As múltiplas dificuldades que surgem na leitura se tornam para o leitor um desafio de, fazendo uma leitura de dentro de si, acordando o que está adormecido, percorrer a sua via sacra enquanto demanda do sagrado, do “além”.
A obra como um todo se constitui um grande círculo, onde o começo é o fim e o fim é o começo, unindo o Prólogo e a última Estação:

Agora é o começo,
de que começo é agora?
(Prólogo)

Alfa eÔmega recomeçam o incessante começar
Que não tem começo nem fim.
(Estação 48)

Imagine o leitor em grande vitral circular onde do centro partem quarenta e oito raios: são as Estações. Estas, na unidade do círculo, se entre-irradiam, compondo um vivo, poético e abismal vitral. Temos aí a sucessividade e simultaneidade, o mesmo no círculo do Alfa e no do Ômega. No entre-circular estão os Caminhos de quando e além. Lançados nesse “entre”, temos que cumprir nossos destinos. É um destino que se dá no entre enquanto caminhada de travessia.

Enquanto escreves, dormes, enquanto dormes, caminhas,
enquanto caminhas, vives e revives mortes e martírios,
idas e vindas de vidas idas e esquecidas.
(Estação 35)

Mas em cada um acontece o círculo:

Buscais tesouros imersos em alguma Atlântida ignorada,
quando tudo gira ao redor de vossa coluna vertebral
e no quadrado de vossos olhos e mãos.
(Estação 26)

A forma nada diz se o silêncio não fingir a figura e ditar a voz. É neste entre silêncio e fala que se dá a obra.

Entre o sono e o sonho / entre mim e o que em mim /
é o quem eu me suponho, / corre um rio sem fim.
(Estação 32, 38)

Por isso, a obra opera a partir do entre enquanto diálogo e espelho:

Na alquimia da imponderável transmutação,
onde Rei e Rainha se espelham...
(Estação 48)

Mas esse “Rei e Rainha” são o animus e a anima, a identidade e a diferença. Por isso, o realizar os diálogos é proceder ao espelhar-se pelo qual chegamos à unidade do mesmo. Ao lado da questão do destino, talvez a questão do espelho seja igualmente a mais permanente e profunda. Mas esta questão não é só desta obra, mas da poética de Helena Parente Cunha. Lembre-se apenas sua obra Mulher no espelho. O espelho não é algo ao lado da mulher, é um entre que caminha tanto mais para ela quanto mais adentra o homem, ou nas palavras de Helena, tanto mais é anima quanto mais é animus. É a permanente diferença procurando a identidade. Nesse sentido, a leitura atenta das Estações nos mostraria um mergulhar poético-abismal de busca de luz do que na mulher é mulher, pois Helena é uma sensível escuta do que nela é mulher. Não mulher gênero, algo genérico. Mas o humano da mulher, porque toda mulher é mulher do e no humano. E o humano é humano enquanto demanda do poético-sagrado. E trazer “isso” para a linguagem, para a poesia é o grande desafio de sua poética. Não será esta a via sacra desta obra nas 48 Estações? Não será “esta” a sua via sacra, a demanda do sagrado enquanto poesia e da poesia enquanto o humano do homem, o “além”?

Manuel Antônio de Castro

Poemas do originário




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(Apresentação do livro de Diogo Pereira"Entreteias")


Este é o primeiro livro de poemas de Diego Braga. Como apresentá-lo? Interessará ao leitor algo da sua vida? Fará isso diferença? Certamente não. Sem dúvida nenhuma, o melhor cartão de apresentação é a própria obra. Afinal, é esta que interessa a quem compra o livro ou o escolhe para ler. Mas de uma coisa já gostaria de alertar o leitor, ao ler acima primeiro livro de poemas não se engane. Não significa aí inexperiência, aquelas primeiras produções dos impulsos e arroubos subjetivos, as impressões diante de prometidas visitas e envolvimentos das musas. Pois muitos são os chamados, assim pensam, e poucos os escolhidos, porque mais que pensar, estes, são pensados.
É natural que o amadurecimento corporal leve a envolvimentos afetivos nem sempre realizados e, num movimento misterioso, procure o seu lugar de equilíbrio, entre o que se deseja e o que se obtém, na palavra. De certo, a palavra tem este poder, mas ela é ambígua e dissimulada. É próprio do seu poder nos jogar nesse entre o que desejamos como realidade afetiva e subjetiva, e o que em nós é mais do que sentimentos ou desencontros. Ou até desejos de glória, esse não poder da imortalidade vazia e inócua, esse desafio da efemeridade. É no jogo dessa ambigüidade e dissimulação que surge o envolvimento retórico. E como saber quando não é simples retórica como jogo? Simplesmente deixando a palavra ser verbo e poiesis. Então é necessário que nos deixemos atravessar pelo que somos e queremos ser.
O apelo de sermos e querermos ser é sempre um apelo primeiro, inaugural. E é neste sentido que os poemas de Diego Braga são poemas de um primeiro livro. Porque são poemas que se movem no elemento das questões de um tempo primordial. Como o leitor poderá ver claramente são questões tão primordiais que se fazem presentes no mais prosaico e trivial de nosso cotidiano.
Tenha aqui o leitor a curiosidade de ler logo o penúltimo poema, sintomaticamente versando sobre o diário. Que é um diário senão as impressões e acontecências de um aparente tempo que é sempre novo e, ao mesmo tempo, repetido, cansativo, intransitivo, solitariamente refletido e experienciado? Será? Como Diego pensa o diário?
Com esta pergunta peço ao leitor que pare aqui mesmo de ler esta apresentação e comece a ler os poemas. Pode a minha apresentação ser melhor que os próprios poemas? Não pode, porque não tem outra pretensão senão ser uma apresentação. E a melhor apresentação é aquela que surge e acontece no diálogo da leitura. Mas se continuar a ler, fique logo alertado que o diálogo só se dará quando se abrir para o quê no diálogo com os poemas é evocado, chamado a se fazer presente. Deixe então os lugares-comuns, as idéias feitas, as palavras do dia-a-dia, comunicativas e vazias de sentido, porque dialogar não é comunicar o já pensado e dito. É bem mais. É deixar acontecer o silêncio. Não procure nestes poemas a confirmação do que já sabe e que de tantos modos já lhe foi informado. Abra sua mente, seu coração. Pense. Escute o silêncio e aceite a sua provocação. Pense. Deixe-se atravessar pelo que de mais profundo há em si mesmo, leitor, esse apelo inaugural que teima em chamá-lo em cada um dos poemas deste livro primeiro. E então esqueça o nome do autor. Envolva-se todo pelo que já desde que nascemos nos envolve: a teia silenciosa e maravilhosa da vida em suas manifestações sempre belas e envolventes. E o nome do autor não vale nada? Já disse Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas: Nome não dá, recebe. Mas em outra passagem de sua obra-prima diz também: O que é para ser, são as palavras. Neste livro primeiro de Diego Braga, o que é para ser, são as palavras, os poemas. E há motivo maior para o leiro ir direto para os poemas? Ler poesia não é para ser?, isto que em cada um de nós é o que já desde sempre nos é próprio. E se o próprio é o ser, ele é sempre o primeiro.
Os poemas de Diego Braga todos tratam do que é primeiro: as questões. Outra qualidade evidente em seu Entreteias é que, de fato, há um entretecer dialogal com as obras de grandes poetas de todos os tempos. Isto talvez seja, num primeiro instante, um empecilho para os leitores apressados, neste tempo de produções em proporções geométricas, mais repetições que produções inaugurais. Mas se o leitor quer a polpa das frutas que são estes seus poemas, vai ser necessário um outro diálogo, aquele que fundou o que aqui se fez poesia. Seus poemas se constituem criativamente num profundo mergulho dialogal com mitos e culturas de múltiplos tempos e povos. Quem sabe se uma alusão não se torna o curioso levantar de um véu de desvelamento de outros poemas, de outros poetas. E assim o diálogo não só se torna o convite envolvente para a leitura de seus poemas, mas também, com o diálogo com outros poetas, a certeza de que a criação é sempre um diálogo com a memória. Não que esta seja coisa afetiva ou lembrança do passado. Unindo terra e céu, ela se torna a mãe matriz e nutriz da criação em cada um de nós. São as Entreteias.
Entre outros, detenha-se o leitor em estado de espera silenciosa e deixe emergir o que aí imemorialmente nos fala na fala do último poema, o canto trinta e quatro. Quem aí não retoma imediatamente o pensamento poético de Heráclito? Mas de novas vestes, tão novas que convida o leitor a um pensar a vida como um acontecer onde se seja o que acontece. O tempo, o rio, a permanência, a mudança: sempre o mesmo sem serem a mesma coisa, porque têm de ser nossos. Sempre a ambigüidade do mesmo, aparentando mesmice.
Já o canto três nos joga no jogo da transitoriedade, onde sobressai o que nem sempre compreendemos: ser transitório, mas diferente, diverso e, mais, há sempre um entre que persiste na referência de ser e dizer. Eis aí a poesia.
A poiesis é fundamentalmente lúdica, mas de uma seriedade que clama pelo brilho e alegria da plenitude. Como não ver ludismo e seriedade poética no canto seis, onde se fala nada e se diz tudo? E talvez, nós, eu e você leitor, não passemos de um palhaço no circo, sempre já solicitados a dar o salto mortal.
Um poema é energia concentrada, se é poético. E dependendo do momento, da disposição, dos estados de alma, um verso, uma palavra, uma imagem, começa a nos invadir, adentrando, tomando posse, e, possuídos, não mais temos posse do que somos, transformados no que de poema se faz nova realidade em nós, para sermos o que não somos: “Frio é o silêncio que não incomoda” (canto dez). Quanto calafrio e calor nesse único verso! Ou quem sabe, leitor, é apenas a minha disposição anímica, meu pathos?
Diante do que pode ser dito e pensado e visto e vivido e sofrido e fruído e poetizado, nasce no poeta a sensação de insignificância no embate com as palavras, com o discursivo, para adentrar na simplicidade do de dentro, do “vento entre as ervas”, o denso, do que no entre de cada nome se joga, anunciando, no livre aberto, que a poesia liberta:

A imensidão inaugura inocente
a minha insignificância de poeta,
o meu sentido aqui,
quando o vento entre as ervas.

Liberdade: vou voando livre ouvindo aves.
(canto nove)

No manifestar a liberdade, o poeta experiencia e provoca a experienciar a tensão entre o aqui e agora na sua cotidianeidade, e o apelo do que no ordinário se mostra extra-ordinário.
A liberdade lembra amor, esse enigma sempre claro, imediato, palpável e fugidio. Não será, por isso mesmo, um entre?

O entre e o depois de lembrar.
(canto vinte e quatro)

É o que nos convida a pensar Diego Braga. Já no canto trinta, o seu final traz para nós a surpresa, o a-se-pensar, o desacostumar do costumeiro, que por ser verdadeiro nem mais se surpreende a sua não-verdade.
Os poemas de Diego Braga constituem uma voz poética diferente, inesperada, assim posso dizer ao leitor como provocação ao diálogo, esperando que outros diálogos se inaugurem, porque, em escuta do imemorial, surgem em vestes alegres e novas, e em vozes tristes e dolorosas as sempre mesmas questões. Sedentos e jamais dessendentados caminhamos no entre-mapa a estrada da fonte (canto vinte e oito), da verdade (canto trinta e um). Palavras poéticas acordam em nós verdades tão sediças, presentes, cotidianas, que na trivialidade da repetição são como não-verdades às quais não devemos ouvir e – sabe-se – às quais um dia devemos prestar contas. Não como um juízo que um dia virá, mas como um juízo que a toda hora já está vindo, e por isso mesmo o lindo do extraordinário no ordinário não é lindo, não é. Mas é. É o que Entreteias nos faz lembrar.

A arte, o originário e a verdade

(Apresentação de "A origem da obra de arte", de Martin Heidegger)


O leitor que se dispuser a ler atenta e de uma maneira proveitosa o ensaio que tem em mãos deve ter em mente algumas dificuldades e desafios, que devem ser transformados paciente e decididamente em experienciações de vida (e não em simples vivências estéticas ou racionais). Isto exige do leitor uma abertura e escuta essenciais, pois o diálogo com este ensaio pressupõe também e desde o princípio um auto-diálogo.
E o primeiro a se dar conta das dificuldades foi o próprio autor. É o que assinala no Aditamento, escrito para esclarecer algumas contradições aparentes, apontadas pelos críticos em seu ensaio, porque justamente não se abriram para a atitude de questionamento que o ensaio propõe. Diz:

§208 – Permanece uma inevitável carência: que o leitor que adentra, naturalmente de fora, este ensaio, de início e continuamente, não conceba nem interprete as questões a partir da silenciosa fonte originária, de onde brota o que é para ser pensado. Porém, para o próprio autor, permanece a carência de, em cada uma das diferentes estações do caminho, a cada vez, falar justamente a linguagem propícia.

Que advertências essenciais aqui aparecem? A primeira diz respeito à atitude do leitor. Se este, “de fora”, quiser compreender o que diz o ensaio, não conseguirá. A expressão “de fora” diz aí tanto uma atitude objetiva quanto uma subjetiva. E há outra fora dessas duas? Há. O leitor deve se deixar tomar pelas questões. Não somos nós que temos ou não as questões. As questões é que nos têm. Cabe a cada leitor responder e corresponder ao seu apelo, um apelo que vem da “silenciosa fonte originária”. Já o autor, em relação às questões, está consciente também de sua dificuldade, de sua carência, manifestada na difícil tarefa de para cada uma encontrar a “linguagem propícia”.
Como Heidegger elaborou o ensaio? Em primeiro lugar o autor tece um discurso contido em torno das questões que estão em causa. Nenhuma palavra é inútil ou redundante, evitando o linguajar retórico de sinônimos que nada acrescentam ou frases bonitas com imagens aleatórias. Sua linguagem é extremamente despojada e densa. Exige uma atenção permanente a cada passo dado. Na condução do pensamento, seu modo de expor tem uma condução irônica, podendo levar a entendimentos equivocados se a leitura é feita superficialmente, pois ele apresenta a versão metafísica da questão de uma maneira clara e convincente, mas na qual não acredita. No fundo, ele propõe um diálogo permanente com a visão e conceitos metafísicos. E procede à exposição destes dentro de um encadeamento muito lógico, até se defrontar com alguma inconsistência ou paradoxo. Refaz, então, o caminho numa nova direção, onde expõe seu pensamento e entendimento das questões. Por isso, no fundo, há sempre um diálogo com a metafísica, tendo por isso mesmo uma abrangência muito grande. O leitor deve estar atento a esta abrangência.
É nessa dinâmica que ele estruturou o presente ensaio. O título já nos dá as três questões fundamentais, em torno das quais será vista a questão da arte. Esta será encarada como uma questão e não se trata para ele de expor uma nova teoria conceitual que explique o que é a arte. E por que a arte é uma questão? Como questão ela não pode ser resolvida em conceitos, mas antes de tudo deve ser experienciada. Por isso toda a tessitura do ensaio se moveu no intuito de ver melhor o enigma ou questão que é a arte: “§187 – As reflexões precedentes dizem respeito ao enigma da arte, ao enigma que é a própria arte. Está longe a pretensão de resolver o enigma. Resta a tarefa de ver o enigma”.
É por um tal intuito que centraliza sua reflexão em torno das três questões enunciadas no título: o originário, a obra, a arte. Para tratar delas desenvolve o ensaio em quatro grandes partes: uma introdução: §§ 1 a 11, A coisa e a obra, §§12 a 65, A obra e a verdade, §§ 66 a 119, A verdade e a arte, §§ 120 a 186. Posteriormente foi acrescido um Posfácio, §§ 187 a 194, e um Aditamento, §§ 195 a 208.
A questão primeira e permanente diz respeito ao originário. Nele se concentra todo o esforço de reflexão. A questão do ser da obra de arte e do ser da arte encontram na questão do originário o seu lugar apropriado. É ela que se torna a questão diretriz do título. É ela que inaugura as reflexões que percorrem todo o ensaio. Por isso será a primeira palavra do ensaio e encerra-o com uma citação de Hölderlin, onde ela também aparece. O horizonte que ela descortina só vai aparecer no final do ensaio, mais precisamente dos §§ 180 a 186, quando então ela é exposta em toda a sua amplitude, tendo em vista todas as reflexões em torno das duas outras questões enunciadas no título: o ser da obra de arte e o ser da arte. E é também a questão do originário que é retomada no parágrafo final do Aditamento, quando diz: “§208 – Permanece uma inevitável carência “... que o leitor ... não conceba nem interprete as questões a partir da silenciosa fonte originária...”. Portanto, a questão do originário começa e termina circularmente o ensaio. Sem dúvida alguma, tal questão é diretriz e em torno dela se articulam as demais, especialmente as que comparecem no título: obra e arte.
Atentos a esse fato, torna-se decisiva a compreensão do que é o originário, pois o seu emprego é ambíguo no ensaio, porque ora se refere ao pensamento originário, e então traduzimos Ursprung por originário, ora se refere ao pensamento metafísico, e a traduzimos por origem. Uma nota no final da tradução explica esta dupla tradução.
As questões da obra e da arte terão enfoques diferentes, dependendo do sentido em que se toma a palavra Ursprung. Entendemos que as três grandes partes em que dividiu o ensaio estão orientadas por esse duplo sentido. E as questões aí levantadas dizem respeito ao duplo encaminhamento.
O modo de pensar de Heidegger se pauta, em geral, por um procedimento metodológico bem preciso. No presente ensaio, ele o discute brevemente nos parágrafos introdutórios (confira a nota Círculo, §5). Em seguida expõe a concepção metafísica corrente e geral da obra de arte nos §§ 6 a 11. Segundo a visão estético-metafísica, a obra de arte é constituída de um suporte coisal a que é acrescentado algo simbólico ou alegórico. Esse suporte pode receber diferentes denominações: suporte, base, conteúdo, fundo, fundamento, matéria. Como ele precede o simbólico e o alegórico, é isso que ele vai questionar em primeiro lugar. Indiretamente, ao questionar o suporte coisal, também o simbólico e o alegórico estarão sendo questionados, porque dependem da essência desse suporte coisal, sem o qual não subsistem. E então vamos ter a primeira parte do ensaio que ele coerentemente intitulou: A coisa e a obra.
Todo o questionamento da coisa já se faz, porque é decorrente disso, a partir da questão: O que é isto o originário? Pois a questão do originário se dirige à realidade quando se pergunta, entre os pensadores gregos, pela “arché” da physis, de “ta onta”, do “on”. (Para melhor compreender esta questão em torno do “isto”, o leitor deve ler atentamente o ensaio O que é isto – a filosofia, indicado na bibliografia, no final desta apresentação). O que Heidegger vai fazer é retomar esse questionamento em torno da realidade pensada esteticamente como suporte coisal, mas tendo em mente perguntar pela “arché” da arte.
Dentro de um pensamento poético-circular, é necessário fazer todo o caminho. E a coisa como questão só chegará à arte como questão, sendo a mesma questão, depois de examinar cuidadosamente os passos dessa caminhada. Por isso vai expor, na primeira parte, – A coisa e a obra –, as três respostas metafísicas conceituais à pergunta pelo “isto” da coisa, ou seja, pelo que constitui a sua “arché”, a sua essência, o seu originário, a sua verdade. Segundo Heidegger, as três respostas têm algo em comum: elas agridem a coisalidade da coisa. Não deixam o ser coisa da coisa repousar em-si. É que as três respostas foram transformadas, na caminhada ocidental, em conceitos e essências causais. A “arché”, interpretada como fundamento causal, tem seu “telos” transformado em finalidade. Porém, a palavra grega “telos” não diz, em primeiro lugar, finalidade, mas plenitude de sentido, ou seja, a “arché” no vigor máximo do seu repouso.
Heidegger recusa tais interpretações, que deram origem a todas as Teorias Estéticas. Então o caminho de procura da coisalidade da coisa tem que ser abandonado, porque esse caminho não surge de um questionamento poético da obra de arte, mas das Teorias Estéticas. Compreender, portanto, o originário dentro das Teorias Estéticas é compreendê-lo como origem, numa visão essencialista causal e é não compreendê-lo no que ele é como “arché” originário. Terminada essa primeira parte do ensaio, a pergunta a ser colocada deve retornar ao enunciado no título: O originário da obra de arte.
Ao afastar-se da pergunta metafísica e estética, que separa na obra de arte o seu aspecto artístico (o simbólico e o alegórico) e o seu aspecto coisal (o suporte coisal ou teórico), preparou o leitor, com quem dialoga, para a pergunta pelo originário da obra de arte. Com essa pergunta Heidegger se afasta do caminho metafísico e pode dar início ao questionar originário da obra de arte. Esse questionar deverá ser, por necessidade essencial, dialogal-circular. E, por isso, será dividido em duas partes. A primeira recebeu o título: A obra e a verdade. A segunda: A verdade e a arte.
Se a primeira parte tinha como tema a coisa e a obra, ao afastar a “coisa” vista metafísica e causalmente, o que fica inicialmente em questão é a obra. Se justapusermos os dois títulos ficam:
A coisa e a obra / A obra e a verdade.
Notamos imediatamente que a obra se torna o elo comum ao questionamento, mas agora ela será vista a partir da verdade e não mais a partir da pergunta estética pelo suporte coisal. O questionamento do que é a obra é o questionamento do que é a verdade. Mas não podemos esquecer que a pergunta que a tudo precede é a pergunta pelo originário. Por isso, perguntar pela verdade da obra é perguntar pelo originário, ou seja, o pensador não pensa a verdade enquanto um juízo lógico ou de adequação entre a estrutura coisal e a estrutura lógica ou juízo lógico, enunciado na proposição, isto é, um juízo de representação como verdadeiro.
Perguntar pela verdade da obra é perguntar pela realidade da obra. À verdade corresponde a realidade e a realidade deve corresponder ao originário. Em vista disso, a essência da verdade ele a vai pensar no originário como essência essencial, pois a essência da verdade é a verdade da essência, ou seja, na “arché” em seu “telos”. Ele a encontra na palavra grega “aletheia”, isto é, desvelamento. Mas pensar o desvelamento, enquanto a “arché” em seu “telos”, é pensar a realidade em seu “Ereignis”, ou seja, no seu acontecer poético-apropriante. A obra de arte é o acontecer poético-apropriante da verdade, é o pôr-se em obra da verdade. Um tal acontecer acontece sempre na dis-puta de Terra e Mundo. Na obra de arte nunca temos um suporte coisal que suporte o artístico, temos a verdade como dis-puta de Terra e Mundo. Na verdade da obra de arte, enquanto dis-puta, a Terra chega a ser Terra e o Mundo chega a ser Mundo. Na dis-puta acontece a clareira como o aberto da abertura. Esta é que constitui ontologicamente o ser humano. Por isso ele entendido como Da-sein, que traduzimos como Entre-ser. Esse “entre” não é o entre preposicional da gramática, mas o lugar da diferença ontológica. Eis porque a dis-puta é um acontecer poético-apropriante, ou seja, da verdade e da não-verdade, onde o ser acontecendo no Entre-ser chega a ser, como referência essencial de essência humana E ser. Esse “E” é o “entre”.
No horizonte da obra de arte como verdade, a idéia de suporte ou materialidade fica completamente afastado. E com isso, a “morphé” ou figura (forma), se inscreve na questão do limite (“peras”), mas em tensão com o Nada, o Vazio, o Não-limite, e não e jamais com a materialidade ou suporte coisal. A idéia de materialidade, até um certo sentido, faz-se presente no utensílio, mas nunca na obra de arte. É neste sentido que a obra de arte, por não ter originariamente uma finalidade, não pode ser útil ou inútil. A questão atributiva ou adjetiva decorre do primeiro conceito de “on” ou “coisa”, um conceito não originário, mas essencialista e causal. Por isso, toda classificação adjetiva será sempre metafísica e essencialista. A obra de arte manifesta a realidade enquanto verdade e não-verdade, enquanto Mundo e Terra.
Porém, ainda resta uma questão: toda obra de arte é “esta” ou “aquela” obra de arte”. E até onde a sua verdade é também e se limita a ser “esta” ou “aquela” verdade? Perderia então a verdade o seu sentido originário, porque delimitado a “esta” ou “aquela” obra de arte, a “esta” ou “aquela” verdade? O originário nunca pode ser o originário que se esgote num ente. Por isso ele é originário e não origem, nem fundamento identitário. Não é fundamento porque é um pulo primordial, ou seja, Ur-Sprung. Ele tem que ser o ser dos entes, a verdade originária dos entes. Ele tem que ser o originário enquanto ser dos entes que permanece e perdura na mudança e manifestação dos entes em seu “telos”. Mas aqui “telos” como o advir à plenitude do repouso. O que está aqui em questão é algo enigmático e ambíguo: a referência entre ente e ser, limite e não-limite, mudança e permanência. O que é o limite? No corpo do ensaio, trata-o como traço e figura. Porém, como é algo extremamente complexo, ele retoma essa questão nos §§ 197 a 201. Tudo isso nos leva a questionar: o que é a verdade como manifestação que perdura e permanece?
Para responder a esta questão, Heidegger desenvolve a terceira parte: A verdade e a arte. Se justapusermos o título da segunda e da terceira parte do ensaio, vamos ver logo como o círculo se realiza em torno da obra e da arte, tendo como referência, num e noutro caso, a verdade:
A obra e a verdade / A verdade e a arte.
Tanto a obra como a arte são referenciadas pela verdade. Mas como pode a verdade ser ao mesmo tempo a verdade da obra e a verdade da arte, sem que se caia num conceito de verdade essencializante e universal abstrato? Heidegger está bem consciente dessa questão e não pode cair nas soluções fáceis da metafísica e das Teorias Estéticas. Não pode reduzir tudo a uma solução epistemológica conceitual e causal, fundada no sujeito epistemológico. Deve retomar o originário no seu vigor de repouso. Em vista do domínio conceitual metafísico, o que é o repouso, é algo que exige do leitor uma abertura de pensamento e de ascese depurativa. Trata-se, na verdade, de compreender o que ele nos diz na palavra repouso. Este não é a falta de ação, mas a ação em sua plenitude. Porém, esta só acontece na vigência do originário e seu “telos”. Voltamos à questão inicial do título do ensaio, à questão do princípio da obra de arte. (Leia-se a propósito do repouso, o ensaio Serenidade, indicado na bibliografia, no final desta apresentação). O repouso como máximo de ação é uma questão fundamental para a compreensão do originário, da verdade, da realidade, da arte. Em vista disso inicia assim:
§ 130: “A verdade é não-verdade na medida em que lhe pertence o âmbito da proveniência do ainda-não- (do não-) revelado, no sentido do velamento. Ao mesmo tempo, no des-velamento como verdade vige o outro “não” de um duplo vedar. A verdade vige como tal na oposição de clareira e duplo velamento. A verdade é a disputa originário-inaugural na qual sempre de um certo modo se conquista o aberto, no qual, tudo, que como ente se mostra e subtrai, se situa, e a partir do qual tudo se retrai”.
Não é o duplo não a possibilidade maior de toda afirmação, uma afirmação que radica no originário como vigor do Nada, que sempre se retrai? Por isso diz no § 175: “O projeto poietizante provém do Nada, do ponto de vista de que ele nunca toma sua doação do corriqueiro e do existente até então. Porém, ele nunca provém do nada na medida em que o projetado através dele é apenas o destino retido do próprio Entre-ser [Da-sein] histórico”.
Este “Nada” nada tem a ver com o nada do niilismo, ele é o Nada originário da não-verdade. Acostumados a ver a verdade como o verdadeiro e este como a representação de algo ou a adequação entre o enunciado e a enunciação, remeter agora a questão da verdade para o nada originário da não-verdade, nos lança num abismo sem fundo, exigindo de nós um “salto” (Sprung). Infelizmente, formatados e domesticados pelo pensamento conceitual metafísico, pelo racionalismo moderno e idealista, onde só aparentemente se questiona, causa-nos estranheza ligar a verdade a um “salto mortal” no “abismo” (Abgrund). Nem por isso ele desaparece pela simples exercício da vontade racionalista. Ele se faz tão presente como o próprio destino, o destino de que Édipo é a grande e permanente figura-questão, porque Édipo não é algo ficcional, é a concreta imagem-questão do destino em que originariamente o ser humano já está lançado. Com ele, todo ser humano tem que se defrontar, consciente ou inconscientemente. Na realidade, a imagem-questão “salto mortal”, ou “salto originário” como verdade originária, faz parte da tradição ocidental, por mais que o homem moderno a queira negar. E quem nos mostra e demonstra isso é o poeta-pensador Octávio Paz, num ensaio fundamental a propósito da Revelação poética, que ele intitulou: “La outra orilla” (A outra margem). (Confira a bibliografia no final da apresentação). Diríamos com João Guimarães Rosa que é a Terceira margem do rio, título de um conto de Primeira estórias. (Ver bibliografia).
O Nada é longamente tratado no ensaio: O que é metafísica?, e no livro: Introdução à metafísica. (Confira as indicações bibliográficas no final desta apresentação). Depois desta caminhada toda é que Heidegger propriamente vai expor o que compreende e qual o alcance da questão central do seu ensaio ou seja, o originário enquanto verdade. Ele o explicita de um modo radical do § 180 a 186.
É no horizonte da verdade como desvelamento, em seu duplo negar, que Heidegger vai pensar O originário da obra de arte. O originário da verdade é a verdade do originário. Por isso a questão da verdade não é o núcleo fundamental apenas deste ensaio sobre a arte. Ela é a questão maior que atravessa e se faz presente como questão diretriz de toda a obra de Heidegger, porque a questão da verdade é a questão da realidade. Esta questão, além de ser tratada ao longo de todo o ensaio sobre a arte, é tematizada em outros livros e ensaios. Cabe ao leitor experienciar a questão, mergulhando nos textos de Heidegger. A retomada incessante da questão pelo próprio Heidegger já mostra a importância que essa questão tem em sua obra. E ela é, sem dúvida, também a questão para a arte, porque é a questão em que todo ser humano se debate. O conceito de arte como representação não tem a menor sustentação, nem artística, nem de pensamento, uma vez que não se pode pensar e ver a arte a partir de qualquer suporte: material ou teórico.
Não há como indicar uma ordem de leitura dos textos de Heidegger sobre verdade. Veja os seguintes títulos:

- Aletheia. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002;
- Von Wesen der Wahrheit. In: Wegmarken. Em português: Sobre a essência da verdade. In: Heidegger – Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 127-145);
- Platons Lehre von der Wahrheit (Tradução francesa em: Questions II. Paris, Gallimard, 1968). In: Wegmarken, em alemão.
- De l’ essence de la vérité – approche de l’ “allegorie de la caverne” et du Théétète de Platon. Paris, Gallimard, 2001. Gesamtausgabe, Band 19. Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1992.
- Vom Wesen der Wahrheit, Band 36/37 – Gesamtausgabe. Frankfurt, Vittorio Klostermann, 2001
- Parmenides. Band 54 - Gesamtausgabe. Frankfurt, Vittorio Klostermann, 2ª. ed. 1992. Trad. Espanhola de Carlos Másmela. Madrid, Ediciones Akal, 2005.

Pelo número de obras dedicadas à questão da verdade, o leitor pode ter uma pequena idéia do lugar fundamental dessa questão tanto para o pensamento como para a arte. Na realidade, para a vida, pois julgamos que é real o que é verdadeiro e que é verdadeiro o que é real. Notará também o leitor que ele estabelece um diálogo permanente com Platão. É importante que o leitor saiba que o Platão que emerge desse diálogo ainda é o Platão pensador e não aquele que o platonismo reduziu a um ismo doutrinal, cheio de conceitos, e do qual se ausentaram as questões.
Quando agora olhamos os diferentes títulos das partes do ensaio e vemos que há uma profunda interligação, não podemos deixar de chamar atenção para uma correlação final. O título da primeira parte diz: A coisa e a obra. culo se completa em torno da obra e da arte, tendo como refere manifestaçpaerguntao tçara os valores dos procedimentos teO título da terceira parte diz: A verdade e a arte. Justapostos ficam:
A coisa e a obra / A verdade e a arte.
Então perguntamos: qual a relação entre “coisa” e “arte”?, uma vez que uma dá início ao questionamento e a outra o encerra. Se pensarmos, como foi feito no percurso de todo o ensaio, circularmente, veremos que a questão da “coisa” recebe no ensaio dois encaminhamentos: o primeiro diz respeito aos conceitos metafísicos e à sua compreensão causal finalista. Olhando agora o título do ensaio: O originário da obra de arte, notamos que há um segundo encaminhamento, onde é a arte, a partir do originário, que nos abre o caminho para o que propriamente é “coisa”. O originário, a coisa e a arte remetem para o mesmo, mas não são a mesma coisa. Por isso ele pode afirmar no § 204: “... o que é a arte é uma daquelas perguntas a que no ensaio não é dada nenhuma resposta. O que parece ser resposta não passa de orientação para o questionamento”.
Esta afirmação do autor deve deixar bem claras três questões:
1ª. “§ 204. A arte não é tomada nem como um campo de realização cultural nem como uma manifestação do Espírito. Ela pertence ao acontecer-poético-apropriante [Ereignis], a partir do qual se determina o “sentido do ser” (compare Ser e Tempo)”.
Neste sentido, o ensaio se inscreve, como não poderia deixar de ser, na questão central da obra heideggeriana, que tem como mote a pergunta pelo esquecimento do sentido do ser, pela verdade do ser. É neste horizonte que se pensa o originário da obra de arte. Isto pressupõe que o leitor do ensaio, para que o compreenda, se lance nesse questionamento essencial que deve ser acompanhado pela leitura de outras obras e ensaios de Heidegger. Fazendo isso não estará apenas dialogando com as obras do autor, mas estará se abrindo para um diálogo com o pensamento metafísico ocidental. E esta, sem dúvida, é uma das maiores dificuldades para o leitor: ter um mínimo de conhecimento de todo este longo e complexo percurso filosófico, mas que por si não resolve, se for algo externo e conceitual. É decisivo que se abra para o que permanente e originariamente está sempre em questão, que se abra, enfim, para a história e estória do ser, da verdade do ser. Feito isso, poderá dialogar também com as obras de pensamento e com o pensamento poético de diferentes culturas e épocas.
2ª. Quando o autor caracteriza a obra de arte como “pôr-em-obra da verdade” fica implícita uma ambigüidade essencial. Quem é o sujeito de pôr? A verdade tanto pode ser o sujeito como o objeto, mas esta dualidade é imprópria. Na realidade e em verdade a arte é pensada a partir do acontecer-poético-apropriante originário. Este acontecer está para além da relação sujeito/objeto, porque o ser é apelo destinal aos homens, mas não sem estes. A essência do humano é o ser humano como lugar do acontecer poético-apropriante deste apelo destinal. No ser o lugar do acontecer deste apelo, é que o ser homem chega propriamente ao seu ser, isto é, ao humano. Neste sentido, toda obra de arte como lugar da verdade diz respeito ao lugar do humano como obra-de-arte, isto é, como o desvelar do humano.
3ª. Neste horizonte do desvelar do humano como obra-de-arte, coloca-se a questão permanente para todas as épocas e seres humanos: “... a referência do ser e da essência humana” § 206. Devemos entender aí como referência algo radical e enigmático. Eis o motivo pelo qual o autor logo a seguir diz aí mesmo que ela é “uma dificuldade aflitiva”. Por quê? Todo o esforço do pensador em pensar a referência do ser da obra de arte e do ser da arte encontra na referência da essência humana e do ser o seu horizonte de tentativa de compreensão.
De imediato, o que sempre se dá é o ente, é a obra de arte. Isto é tranqüilo e incontestável. Porém, não é meu pensar ou ver que põe o ente. Ele, originariamente, já se dá. Sem o dar-se eu não poderia nem vê-lo nem pensá-lo. De tudo que se dá a ver, vemos muito pouco e o pensamos ainda menos. De tudo que se dá a ver, é muito, mas muito mais o que não vemos e nem pensamos. Querer reduzir o que se dá a ver a qualquer perspectivismo ou jogo perspectivista subjetivo-epistemológico é jogar o jogo da avestruz. A vida num milímetro de terra é incomensuravelmente maior do que podemos detectar e ver. Para além do consciente há irrefutavelmente o inconsciente. Cada ente também não se põe a si mesmo. Ele é uma doação do ser, no sentido da verdade do ser. (Confira na bibliografia da Apresentação, de Heidegger: Tempo e ser).
É nesse dar-se que o ente chega à sua verdade e o ser homem chega ao que lhe é próprio: o humano, como a verdade do que é, como o que lhe é próprio. Mas o que antes de tudo é é o ser. Nessa referência acontecem duas questões essnciais: 1ª. O ser como originário dos entes, mas não como origem nem como essência universal abstrata. Isso fica muito evidente quanto constatamos que não é através de um conceito geral de arte que podemos chegar a conhecer “esta” ou “aquela” obra de arte no que ela é “esta” ou “aquela” obra de arte. O universal abstrato não dá conta da singularidade de cada obra, mas esta também só pode viger pelo vigor do originário.
Há uma referência necessária entre obra de arte e arte, assim como há uma referência necessária entre essência do humano e ser. Este “e” (o “entre”) não indica uma simples adição, mas o originário onde acontece a vigência da arte como o vigente da obra de arte. Por isso, esse “e/entre” originário foge à classificação alternativa de sujeito ou objeto, justamente por ser o originário concreto do universal e do singular;
2ª. É no âmbito do originário que Heidegger vai pensar a questão do criador/autor e do leitor/desvelador. O criador não é criador a partir de sua vontade ou imaginação, mas a partir do acontecer, nele, do originário como verdade. É o que Heidegger encaminha como Ereignis, o acontecer poético-apropriante.
Deixando acontecer nele a verdade, a obra é obra de arte, pois a arte é o pôr-se-em-obra da verdade. Esta é a grande tese do ensaio, mas numa nota posterior, de 1960, o autor sugere a substituição de “pôr em obra” por, porque diz melhor: “trazer-à-obra, pro-duzir, trazer enquanto deixar; poiesis”, § 196 (a).
Se o autor não é autor a partir de sua vontade e decisão, também o leitor não é o sujeito do ler. O leitor é leitor quando deixa o logos ser logos, no e como diá-logo. O acontecer do logos na leitura do leitor só acontece quando o leitor faz da leitura um desvelo (como o desvelo da mãe para com o filho). O desvelo traz em si a obediência à fala da verdade da obra de arte no acontecer poético-apropriante, no acontecer do logos. Desvelo é sempre um diálogo amoroso com a verdade da arte. O desvelo amoroso é um desvelamento no sentido grego de aletheia. E esta é o desvelamento da realidade como verdade. Temos, portanto, aí a referência de leitor e obra de arte como desvelo, porque acontece o desvelamento, a verdade.
À leitura como referência de leitor e obra de arte, Heidegger denominou: Bewahrung, guarda, conservação. É, em princípio, estranho que o autor, formado numa tradição hermenêutica, não tenha preferido esta palavra àquela. Naquela palavra ressoa o cuidar que conserva. O verbo bewahren significa conservar, não esquecer. O cuidar que conserva é o conservar do persistir e perdurar do que propriamente é a verdade, daí a ligação de Bewahrung com Wahrheit (verdade), que o pensador pensa como aletheia/desvelamento e Ereignis. O desvelo é um deixar perdurar o que acontece e permanece na constância do originário: “ ‘Wesen’, ‘viger’ é a mesma palavra que ‘währen’, ‘durar’, ‘permanecer’, ‘ficar’. Pensamos a vigência como a duração daquilo que, tendo chegado a desencobrir-se, assim perdura e permanece”. (Conferir na bibliografia no fim da apresentação Ensaios e conferências, p. 43). Wahrheit e Bewahrung têm o mesmo étimo do antigo alto-alemão: wara. Em Carta sobre o humanismo, p. 24, diz: “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília [desvelo] é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam [aufbewahren] na linguagem” (conf. bibliografia). O conservar, em alemão, aufbewahren, na linguagem é o desvelo, o amor como vigor originário de união (logos). A vigília como desvelo também indica a presença cuidadosa e amorosa perante o que se vela e é misterioso. No “velório” não se vela simplesmente o morto, vela-se no morto o mistério da morte. E o interessante na palavra portuguesa des-velo, é que esse prefixo não indica negação, mas intensificação, no desvelo acontece o velar densificado pelo cuidado amoroso, pelo que está sendo velado e a partir do que se vela.
Também os leitores são solicitados à mesma vigília dos poetas e pensadores, porque os três precisam ser tomados pelo cuidado do que é digno de ser pensado: a verdade do sentido do ser, o mistério velado da verdade do ser. Toda vigília ou desvelo só é se for Ereignis, o acontecer poético-apropriante ou verdade. A constância do originário [wesen] como verdade é o amor originante. O desvelo é um deixar acontecer do saber como sabor do saber amoroso. É o que o pensador Platão denominou filos-sofia: o amor do saber.

Além disso, a palavra filosofia diz mais do que isso, de forma mais primigênia outra coisa. Filosofia é a junção de duas palavras, mas que significam um pouco mais do que amar o saber. Philos é originariamente, na língua grega, um pronome possessivo que dá conta do que pertence a alguém de maneira irreversível, tal como o nosso joelho nos pertence. Não diz então philos de qualquer espécie de posse transitória. Não se deve talvez nem falar, nesse caso, de posse, mas de pertença, daquilo que nos foi dado pela natureza e que ela mesma, só por si, não nos pode tirar. Philos é, de modo radical – um próprio. Um próprio tal como uma pronúncia não é separada do que pronuncia, senão na linguagem tornada mero meio, mero instrumento de comunicação. Assim, philos é o que é próprio e não pode deixar de sê-lo. (Jardim, 2004: 102).

A partir do pensamento de Antônio Jardim, podemos fazer a ligação entre: verdade, aletheia, desvelamento, desvelo/cuidado amoroso do originário, acontecer poético-apropriante, próprio como o que é vigente e permanece, Bewahrung. Em sua vigência e persistência, o originário é amor manifestante do que ele é em sua plenitude de sentido. Em termos gregos, o originário é a “arché” em seu “telos”. O desvelo do leitor não é um ato de sua vontade, é o acontecer poético-apropriante da arte como e em sua verdade. É nesse sentido que a obra de arte é o “pôr-se-em-obra da verdade” e o leitor desvelando se desvela como a mais fundamental obra de arte, porque no desvelo vela, cuida do que é digno de ser cuidado, pensado. Como desvelo, toda leitura é um narrar inaugural, onde a realidade se desvelando faz-se mundo, no dar-se e retrair-se do ser como época. Nas épocas temos a história da verdade do ser enquanto desvelamento e velamento, enquanto Mundo e Terra. E não e jamais como amorfa cronologia causal historiográfica. Esta, para poder falar do significado causal da historiografia, só o pode, embora num reducionismo causalista empobrecedor, a partir do sentido originário da verdade do ser como acontecer poético-apropriante, Ereignis. Por isso, Heidegger, nas sucessivas edições do presente ensaio, acrescentou em nota a diversos parágrafos, a palavra Ereignis. Este acréscimo é fundamental, pois a compreensão da arte como verdade do ser significa, por seu lado, a compreensão desta como acontecer poético-apropriante. Arte, originariamente, é sempre acontecer poético-apropriante como verdade do sentido do ser.
A permanência do humano para além das vicissitudes culturais e epocais é a permanência da referência do ser e da essência humana. À permanência como vigor da mudança e na sua mútua referência é que Heidegger convida a pensar como a verdade ou O originário da obra de arte.
Nunca se sabe que tipo de leitor dialogará com as questões que no ensaio estão propostas e levantadas. Por isso a indicação de leitura de outros ensaios e obras de Heidegger ajuda na caminhada dialogante. Para isso o leitor deve estar atento à dinâmica criativa do pensamento do pensador e tornar suas as questões do pensamento poético pensante.
Heidegger reitera que não propõe nenhuma solução para o enigma ou questão que é a arte. O que isso quer dizer? Diante da questão do originário em que se move o humano do homem como próprio da arte, a dinâmica de pensamento da presente obra-ensaio move-se no questionar e dialogar, e nunca numa concatenação de conceitos fechados, comprovando uma ou mais teses prévias.
Pelo questionar e dialogar, o autor estabelece uma rede de referências entre algumas palavras essenciais em que uma solicita a outra e esta a outras. Sem o leitor apreender esta dinâmica de referências, dificilmente irá compreender o operar da obra-ensaio na solicitação de um pensar que acompanhe, enquanto diálogo, o que é posto em questão. Quando o leitor conseguir, a partir do que lhe é próprio, fazer circular em diálogo o seu pensamento com o que é proposto como questão, então O originário da obra de arte começou a acontecer.
Para facilitar este percurso, oferecemos ao leitor três recursos:
1º. No final do ensaio algumas notas explicativas quanto a opções de tradução de alguns vocábulos essenciais, na constituição do todo da obra-ensaio. Certamente haveria outras possibilidades de tradução e até podemos ter cometido algumas falhas, naturalmente inevitáveis em toda tradução. Porém, o sentido vivo do todo da obra-ensaio foi decisivo. A tradução não se constitui numa amorfa transliteração. Moveu-nos o desvelo como o próprio pensador o propõe na referência de cada leitor com as grandes obras de arte e de pensamento. Julgamos que estamos diante de uma grande obra-ensaio de pensamento.
2º. Incluimos um índice remissivo. O importante é o próprio leitor fazer do remeter de um vocábulo para outro, dentro das passagens indicadas, uma dinâmica de reflexão e pensamento. Isto é essencial porque, moldados pelo e no pensamento metafísico, o deixar acontecer do pensamento originário exige do leitor uma paciente e difícil disciplina, pois o mais simples é também o mais doloroso: deixar eclodir no ordinário e habitual o extraordinário sempre inaugural. Difícil é, impossível não, sobretudo se houver a disposição de escuta do que já desde sempre como auto-diálogo nos move: o originário como o extraordinário de todo inaugurável a que a cada dia somos convocados pela voz íntima do que nos é próprio.
3º. No ensaio, a opção de vocabulário é cuidadosamente escolhida. Porém certas palavras encontram em outros ensaios ou obras, por parte do autor, uma reflexão bem mais ampla e aprofundada. O leitor que quiser, portanto, mover-se com maior profundidade e cuidado em relação às questões, pode e até deve procurar ler, dentro do possível, esses outros ensaios ou obras. Para isso damos a seguir algumas indicações. Todas, seria impossível e deixar de reconhecer nossos limites. Vale, cremos o intuito de abrir vias de percursos inaugurais para cada leitor.
O próprio autor no decorrer do texto já faz numerosas indicações. Nem todas elas já se encontram traduzidas para o português ou não são de nosso conhecimento. Não pretendemos indicar tudo, mas o que achamos essencial dentro de nosso horizonte de conhecimento.

No final desta apresentação não poderíamos deixar de agradecer a ajuda preciosa, em passagens de difícil tradução, da Profa. Dra. Maria José P. Monteiro, do Departamento de Letras Anglo-germânicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Bibliografia
Textos citados pelo autor no corpo do ensaio A origem da obra de arte.

1 – Hegel e os gregos. Conferir a tradução portuguesa in: Os pensadores. Heidegger. Trad. Ernildo Stein. S. Paulo, Abril Cultural, 1979.
2 – Zur Sache des Denkens.
3 – O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. Conferir a tradução portuguesa in: Os pensadores. Heidegger. Trad. Ernildo Stein. S. Paulo, Abril Cultural, 1979.
4 – Sprache und Heimat.
5 – Aus der Erfahrung des Denkens.
6 – Identidade e diferença. Conferir a tradução portuguesa in: Os pensadores. Heidegger. Trad. Ernildo Stein. S. Paulo, Abril Cultural, 1979.
7 – A coisa. Conferir a tradução portuguesa in: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Vozes, 2002.
8 – Ser e tempo. Conferir a tradução portuguesa. Trad. Márcia de Sá Cavalvanti. Petrópolis, Vozes, 2004.
9 – Zur Seinsfrage.
10 – O autor cita ainda o fragmento 53 de Heráclito.

Algumas questões que aparecem no texto do ensaio são desenvolvidas mais profundamente em outros ensaios ou obras. Nesse sentido sugerimos a leitura, para aprofundamento de:

1 – Que é isto – a filosofia? Conferir a tradução portuguesa in: Os pensadores. Heidegger. Trad. Ernildo Stein. S.Paulo, Abril Cultural, 1979.
2 – Que é metafísica? Conferir a tradução portuguesa in: Os pensadores. Heidegger. Trad. Ernildo Stein. S. Paulo, Abril Cultural, 1979.
3 – Tempo e ser. Conferir a tradução portuguesa in: Os pensadores. Heidegger. Trad. Ernildo Stein. S.Paulo, Abril Cultural, 1979.
4 – Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.
5 – “... poeticamente o homem habita...”. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.
6 – Logos (Heráclito, fragmento 50). In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.
7 – Aletheia (Heráclito, fragmento 16). In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.
8 – A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.
9 – Ciência e pensamento do sentido. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.
10 – Hölderlin e a essência da poesia. Há tradução francesa, in: Approche de Hölderlin. Paris, Gallimard, 1962. Há também tradução espanhola: Trad. Juan David García Bacca. Barcelona, Anthropos Editorial, 1989
11 – A caminho da linguagem. Trad. Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, Vozes, 2003.
12 – Serenidade. Trad. Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa, Instituto Piaget, s.d.
13 – Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967.
14 – Aportes a la filosofia – acerca del evento. Trad. Dina V. Picotti C. Buenos Aires, Editorial Almagesto e Editorial Biblos, 2003.

Outra bibliografia

JARDIM, Antônio. Quando a paixão é filosofia. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro, 7letras, 2004.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. México, Fondo de Cultura Economica, 1973.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967.
CASTRO, Manuel Antônio de. Heidegger e as questões da arte. In: A construção poética do real (org.). Rio de Janeiro, 7letras, 2004.
CASTRO, Manuel Antônio de. Interdisciplinaridade poética: o “entre”. In: Rio de Janeiro, Revista Tempo Brasileiro, 164, jan.-mar., 2006.

A noite e a face oculta de Vinicius de Moraes


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(Apresentação de "A poética da noite em Vinicius de Moraes", de Elenice Groetaers de Moraes)
O convívio dialogal com a obra poética de Vinicius de Moraes levou Elenice Groetaers de Moraes a surpreender e a apreender uma face oculta da sua obra. É o que ela agora apresenta aos leitores em seu livro A poética da noite em Vinicius de Moraes.
Causa estranheza num mundo de tantas falas, ruídos, cantos e lugares onde acontecem as agitações do dia e da noite, com todos os seus apelos de tudo vivenciar, intensa e ininterruptamente, numa sucessão contínua e desenfreada de consumo e envolvimentos; causa estranheza, acentuamos, que Elenice Groetaers, diante de tudo isso, tenha escolhido o tema Noite. Que apelo poderá ela encontrar em seus possíveis leitores? O que, dentro dela, a impulsionou, num sentido contrário a tudo que hoje nos faz apelo e convida às vivências exteriores, a escolher a noite, com seu silêncio, com sua solidão e quietude, justamente o contrário de tudo que hoje se vive? Evita-se a noite envolvente, pois teme-se um triste ou desencantado encontro conosco mesmo? Sobre a noite se silencia por nos fazer deparar com o vazio de tudo e poder nos jogar, inapelavelmente, na proximidade da morte?
No entanto, é esse o tema escolhido. Isso só foi possível porque Elenice não experiencia a noite nesse pavor que traz, para os que vivem o dia dos agitos e fulgurações, um temível pavor das possibilidades da noite. Mas a noite tem possibilidades desconhecidas. Elas esperam quietas, solícitas e acolhedoras os que as procuram, oferecendo muito mais vida e riqueza interior para os que têm coragem de experienciar a noite.
A Noite!
O que de misterioso ela traz em si? Por que é tão forte o seu apelo? Só já quem convive com a noite e ouve-lhe a voz silenciosa é que pode dedicar-se à noite e proporcionar aos leitores riquezas escondidas, mas reais e vivificadoras. Porque Elenice faz da noite uma experiência de vida é que ela tem algo a dizer aos leitores. Por isso, ela nos oferece uma noite luminosa. Seu brilho não é para ser captado pelos olhos solares, mas por corpos sensíveis ao que habitando dentro tem mais luz. Porém, ela só brilhará se o leitor fizer a leitura numa postura aberta e dialogal.
Será, na verdade, um triplo diálogo. O leitor encontrará na prosa leve e sensível da autora uma fala consciente e provocadora. São muitas as facetas que ela visualiza e ilumina. E descobrimos na leitura dialogal de sua fala muitas possibilidades de crescimento. O leitor não encontrará dificuldade de conversar com seu texto. Numa expressão singularmente simples, procura incessantemente a clareza, a fluência e o tom convincente, sem pedantismos terminológicos ou reflexões rebuscadas. É fluir de voz veludosa num mimetismo, difícil de realizar, do que a própria noite é: singular, aconchegante, acolhedora. E de tal maneira presente e plena que a noite se torna uma amiga desejada.
Se é estranha a escolha da noite, mais estranho é ainda o autor com quem ela dialoga: com a obra de Vinicius de Moraes. O leitor, ao ver o título desta obra de Groetaers, pode até levar um susto e suscitar, ao mesmo tempo, muita curiosidade. Tudo que se diz e veicula a respeito de Vinicius, o “mito” que em torno dele os meios de comunicação criaram é o de um homem não da noite. Muito pelo contrário, é o homem das noitadas, da boemia, das bebidas, das muitas mulheres e de muita música. Um homem inquieto, em permanente mutação criativa, em diferentes linguagens artísticas: poemas, canções, crônicas, peças de teatro, cinema. Impulsionado pelo apelo criativo, abre-se para todas as novas possibilidades que seu tempo lhe oferece. Vinicius – na imagem que os meios de comunicação criaram dele – é a própria agitação da noite brilhante, musical, num permanente viver noite a dentro. Contudo, nada nos dizem da experienciação da noite como Noite em sua vida. Como agora Elenice quer – não negar – mas dizer que há um outro Vinicius?
Então acontece o segundo diálogo. Sem polemizar com essa imagem pública do autor, ela, paciente e noturnamente, surpreende, num profundo diálogo com a rica obra do poeta, essa faceta esquecida e ignorada do grande público, mas que está presente e é profunda e de uma importância capital, no todo da sua obra. Depois deste paciente e percuciente trabalho de Groetaers, ninguém mais vai poder ignorar essa faceta importante da obra de Vinicius, mostrando, com isso, como ele é complexo e rico nas suas realizações artísticas. O leitor não vai, porém, neste trabalho dialogal e atento à fala da obra, tomar conhecimento de um assinalar esse tema na sua obra. Só porque a autora é tomada pela noite em seu mistério é que pode se indagar o que também leva Vinicius a se deixar tomar tão fortemente pelo tema Noite em sua obra e vida. E é então que o presente trabalho se densifica.
Quem é que hoje se preocupa com o sentido? Talvez mais pessoas do que a gente imagina e os meios de comunicação, no seu frêmito comunicacional, nos querem fazer supor. A prova é o próprio Vinicius e sua obra, porque o que importa é a obra. A biografia de um criador múltiplo, como é o poeta, é sua obra poética. É ela que fica e nos convida permanentemente ao diálogo pela leitura. Por que o diálogo é tão importante na nossa vida? Diríamos que é importante porque a noite é importante, uma vez que ela é a diferença. A diferença é a nossa condição de afirmação, de conquista do que somos. Por isso, dialogamos, não para concordar, anulando a singularidade inaugural e única de cada um, mas para, no encontra das diferenças, apreendermos a riqueza de nossas possibilidades. E isso é tão verdadeiro que o tema Noite é um dos mais antigos e até dos mais recorrentes nas artes. E mais, é um tema fundador. Nessa perspectiva, o trabalho de Elenice traz uma riqueza muito grande para o conhecimento de nossas origens. Ela vai buscar tais origens, naturalmente, nos mitos. Este contato com os mitos, no caso, voltados para a noite, deve provocar no leitor um certo espanto saudável. O mítico está vivo e atuante. Nos mitos temos um encontro marcado com nossas questões, aquelas que nos acompanham desde que nascemos e solicitam permanentemente um posicionamento para que nossa vida tenha sentido.
O mito faz pensar, como a vida faz pensar, como a noite na obra de Vinicius faz pensar. E então o leitor se vê solicitado a desenvolver um terceiro diálogo. Sentirá o desejo de ir direto à obra do autor, porque sente a necessidade de dialogar consigo mesmo e passar a morar na noite. É que da noite não nos vem o medo nem a proximidade da morte, mas uma possibilidade de que, tornando a vida mais recolhida e povoada pelas falas do que em nós ainda é noite, da noite se faça a luz que ilumina a cada um. É que da Noite, como nos narra o Mito, nasceu Eros e, com ele, o Céu e a Terra. E se, impulsionados por Eros, buscamos a luz do dia e a vida da terra, também na noite e pela noite sentimos o apelo de sentido de tudo isso, ao nos voltarmos para nossas origens: a noite mítica inaugural e primordial. E então espera-se que esta faceta da obra do poeta, tão esquecida e ignorada, possa levar o leitor, ao mesmo tempo, a compreender melhor a aparente vida tumultuada e exterior de Vinicius, porque em tudo isso pulsava muito mais não apenas algo exterior e passageiro, mas uma profunda procura do que nele e em nós há de mais importante: a Noite, Mãe de Eros. E Eros é a energia poética da riqueza e beleza da vida.
A grande contribuição do presente estudo não está apenas, como poderia parecer a uma visão mais imediata, em trazer para cena e destaque, tornando-se novidade, uma faceta da obra de Vinicius, ignorada até por especialistas de sua obra. Isso não é tão difícil de acontecer, porque a obra múltipla do poeta se tece e entretece com os fios de variados e ricos temas e questões. Não. A articulação segura de Groetaers pode suscitar em nós o apelo para o diálogo pela leitura nas três instâncias e dimensões. Cabe ao leitor ir diretamente para a obra do poeta e experienciá-las.

12 março 2008

Ver


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Por mais profunda, ampla e distante que o olho veja, muito mais é o que ele não vê e o que nunca se dá a ver. O olho vê, mas não se vê. Ele vê distante e não pode ver a nuca que lhe está tão próxima. O que o perspectivismo pode afirmar e ver diante do que não vê nem pode afirmar? Por isso mesmo, a palavra e a consciência tremem e se angustiam diante da trama dos limites de sua vontade e dos não-limites de sua impotência. Alivia-os o questionar, piedade do pensar, pois pensar é amar.

Grande Ser-Tao: diálogos amorosos


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"Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá" (Rosa, 1968: 119).


A questão e o homem

O ser humano é lançado na vida e sabe que viver é conviver com a morte. Por isso como diz Grande sertão: veredas, num de seus Leitmotive: Viver, não é?, é muito perigoso. Viver, saber e morte são questões. Não é o ser humano que tem as questões. São estas que têm e configuram o humano do homem. Elas são maiores que o homem. Mesmo imaginando que um dia pudesse haver um computador que armazenasse, organizasse e processasse todas as ‘informações’ numa reinvenção de progressão geométrica, para além de todos os conceitos e informações reais e imaginários, resta sempre o interstício da questão. A questão é maior do que o homem. Mesmo que o homem se tornasse deus, ainda assim a questão é maior que deus, porque é maior que o homem. “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” (p.18). O ser-tao é a questão, o a-ser-pensado, isto é, o a-ser-cuidado no e com o desvelo amoroso. O Homem como humano é a travessia da questão entre morte e vida. Jogado no entre da questão, só lhe resta morrer para viver. “E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério” (p.49). O mistério do Ser-Tao, a questão maior, é maior que o homem.

A questão e o diálogo
O Ser-Tao é a questão para Guimarães Rosa e a torna poética em sua obra-prima Grande sertão: veredas, ao configurar a obra num diálogo abismal entre Riobaldo e o ouvinte. O diálogo, muito mais que um recurso formal, é a única via de questionar a questão, porque no e como diálogo se dá o Ser-Tao, o Grande sertão. Mas por que abismal?

A questão: entre o Nada e o Tudo
A obra começa com um travessão. Porém, não se reduz, formalmente, à indicação da introdução do discurso direto. As formas, sem o corpo vivo da arte, são estruturas esqueléticas. Se olharmos o final da obra, veremos que há uma última palavra, única, solta entre dois pontos, valendo por si, sem necessidade de proposição e juízo, absoluta: Travessia. Mas não termina aí a obra. Destacado, em baixo, solto, único, abismal: um sinal de infinito: o tudo. E se, agora, a partir desse todo abismal voltarmos ao início do início, veremos que antes da primeira palavra, Nonada, há o travessão, um traço, um algo que surge de onde?, se antes só há o vazio de tudo, seja do branco da página, seja do enigma do que não vemos, não sabemos e nem podemos, a não ser, nada dizer. E é a partir disso, que Riobaldo, a figura-questão, principia o narrar: Nonada. Como travessia, também palavra única: isolada, majestosa, circunspecta, absoluta. Surgimos, começamos, principiamos, que palavra usar?, do Nada. Mas uma coisa é certa: estamos e somos no/nada. No: que é este no?
Esse no assinala a clareira, essa abertura dentro da qual viemos para a manifestação. Narrar é manifestar na clareira a fala do silêncio. No é muito mais do que a forma gramatical da contração da preposição em/in com o artigo definido o. No assinala na clareira, o aberto da livre manifestação, a nossa liminaridade, pois estamos sempre num limiar, a partir do qual e dentro do qual realizamos a nossa travessia. É um in poético-ontológico. De in formou-se o entre que deu origem à palavra intuição. Esta reúne o in e o verbo “tueor, que diz: olhar e guardar” (Castro, 2006: 18). Intuição diz, pois, o pathos, a disposição de desvelo para com a questão, a razão de ser e narrar de Riobaldo, isto é, o a-ser-cuidado: o Tudo, o Ser-Tao.

A questão e o narrar
Se a questão tem o homem, ela se dá no homem. Há, pois uma tensão, entre o homem como ente e o humano do homem que faz do homem um entre, aquele que sendo ente é ente aberto para o Ser-Tao. Nessa abertura que faz do homem um entre-ser, o humano consiste na demanda do ser, realizável dentro do ser como Tao. Tao é uma misteriosa palavra chinesa que, entre outros sentidos, assinala a caminhada dos caminhos nos quais e pelos quais o humano do homem vem a ser o que é no como enquanto Tao do Ser: o Ser-Tao, Veredas.
Jogados na questão do sertão, só nos resta empreender uma caminhada de apreensão e compreensão, não racional, mas enquanto travessia poético-ontológica: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder” (p.79). (Gã: nome da primeira gutural sonora do alfabeto sânscrito, correspondente ao nosso G. (Aulete, 1964: 1877) ). É evidente que a Gã é o próprio Guimarães e Grande sertão, numa junção poética de nome, arte e ser. Porém, diz Guimarães: “Que é que é um nome? Nome não dá: recebe” (p. 121). Isso fica claro na citação, pois esse ser do nome Guimarães é “que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder”, isto é, movendo-se na questão enquanto questionar “querer decifrar as coisas que são importantes”. Para o leitor desta obra, fica evidente que quaisquer problemas circunstanciais, ou seja, intra-mundanos, são absolutamente secundários no que move o narrar da obra. O que inter-essa narrar está claro aí, “não é uma vida de sertanejo ... mas a matéria vertente.” O que lhe inter-essa é a “matéria vertente” enquanto entre-ser. Portanto, há o narrar e a “matéria vertente” que se narra. A palavra “matéria” neste contexto do narrar diz claramente o que está em causa, a questão que se questiona: “o querer decifrar as coisas que são importantes”. Só se pode “querer decifrar” questionando, porque todo questionar questiona porque sabe e não sabe. Já as “coisas importantes” são o que está em causa como questão, são as questões que envolvem necessariamente a nossa vida: “... é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (Rosa, 1968: 79). Não se trata de qualquer matéria, de qualquer assunto, mas da “matéria vertente”. De maneira alguma podemos entender aí vertente simplesmente como dar forma, como quem pega a madeira e dá forma a uma janela ou a linguagem e dá forma a um anúncio, a um conto etc. Já vimos que entre o nada e o tudo, inter-está a travessia, onde a obra é a própria travessia. É o que nos diz esta palavra. Tanto “vertente” como “tra-vessia” formam-se do verbo latino: vertere: “o dar corpo ao suceder”. A travessia é o entre-verter do trans-acontecer poético do viver enquanto Tao.

A configuração das questões
Toda a obra se concentra, enquanto narrar, no querer “decifrar as coisas que são importantes”. Porém, na ordem da narrativa, é importante perceber por que só na página setenta e nove da obra é que o narrador nos diz o que o move. Por que não antes, para orientar o leitor para o que, de fato, constitui a matéria vertente, isto é, a questão, o a-ser-pensado e cuidado desde o início? E esta questão ainda é mais pertinente se atentarmos para a leitura que fizemos do princípio e fim da obra. É claro que há uma lógica interna ao narrar. E ela se dá num configurar as questões numa certa correspondência e correlação. O presente ensaio consiste em tentar apreender essa configuração, as grandes questões, em torno das quais acontece o verter da matéria. Neste sentido, o que na ordem da narrativa o leva a “a querer decifrar as coisas que são importantes” surge de um questionamento em torno de Nhorinhá. Ela é a mulher da vida com a qual um dia Riobaldo fez amor. “Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo” (p.78). Oito anos depois recebe a carta dela, Riobaldo já casado: “Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais” (p.78). Porém, algo enigmático lhe acontece: “Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo o tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor” (p. 78). Foi uma relação envolvente, mas passageira, e passados oito anos, ele volta ainda mais forte. “A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda” (p. 78). Nesta passagem vão ser apresentadas três questões que se interligam e, no entre de nada e de tudo, constituem a matéria vertente de sua vida, da obra que é nossa vida: Tempo, memória, amor. São três questões entretecidas que configuram a travessia enquanto o humano do homem, daí: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes” (p. 79). Isto é que é o a-se-cuidar, mas ainda não se sabe, daí o questionar. Por isso:

Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar.
Lhe falo do sertão.
Do que não sei.
Um grande sertão!
Não sei.
Ninguém ainda não sabe.
Só umas raríssimas pessoas
- e só essas poucas veredas,
Veredazinhas.
O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (p. 79)

Sem dúvida nenhuma, depois do princípio e do fim da obra, esta passagem é o núcleo central de Grande sertão: veredas. Aí temos duas linhas de construção poética bem distintas. A parte em que se dirige ao leitor enquanto o estabelecimento de um diálogo. A segunda diz respeito ao quê no diálogo se dialoga: a questão do grande sertão e o quê advém no diálogo: “só essas poucas veredas, veredazinhas”. Acontece que o narrador fala do que não sabe. “Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas”.

Diálogo: a obra e o leitor
Caro leitor deste ensaio e de Grande sertão: veredas, o narrador é claríssimo e categórico: “Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas”. Como ficamos nós leitores diante dessas afirmações? Elas são para nós, leitores ouvintes: “Lhe falo”. Esta passagem apenas confirma o que desde o início sustentamos: A questão, o “grande sertão” é maior que o homem. Mas também afirmamos que ela se dá no homem. Portanto, todos nós já nos movemos no grande sertão, queiramos ou não queiramos. Neste caso, não é um caso de escolha. Mas para escutá-lo é um caso de ser escolhido. E pelo que nos afirma Riobaldo, escolhidas “só umas raríssimas pessoas”. E mais. O que do grande sertão se sabe são apenas “essas poucas veredas, veredazinhas”.
Quanto a nós leitores/ouvintes só resta a perplexidade. Como saber se nos incluímos nessas “raríssimas pessoas”, se somos escolhidos, se somos destinados? Como nos abrirmos para a questão que nos tem e o destino que nos foi destinado? Na realidade é disso que trata ao longo de toda a obra. E, portanto, tudo isso é muito complexo. Aqui nos cabe apenas assinalar o que a mim, leitor/ouvinte, parece essencial. Mas pode muito bem acontecer que o leitor deste ensaio e da obra ache diferente. Isso não só pode acontecer como também é o único caminho, pois tantos serão os caminhos quantas as leituras dos leitores. Caminhos são diálogos. Mas há condições. Em tais leituras não estarão incluídas aquelas que se limitarem a falar sobre a obra. Então não há diálogo. É que para elas há uma condição prévia. E quem a diz explicitamente é o próprio narrador, quando nos adverte: “Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto” (p.79). Temos aí três aspectos fundamentais, sem os quais não nos moveremos no “grande sertao” de Grande sertão: veredas. O primeiro é claro: o ouvinte tem que ser tomado pela loucura, sair do campo puramente subjetivo, racional e analítico, para poder ouvir as doideiras que ele diz. Como são as questões que têm o homem, Riobaldo pode afirmar: “...todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas” (p.15). O que é ser doido senão o deixar-se atravessar pelas questões, para além de toda redução e delimitação convencional da normalidade? O que é ser louco senão mais do que ser guiado pela razão deixar-se tomar pela loucura sábia? Deste decorre o segundo: Tais questões enquanto “doideiras” pressupõem um ir além da razão enquanto uma abertura para a escuta. O narrador nos traça o horizonte de tal escuta: ser “homem sobrevindo, sensato, fiel como papel”. Se diz que o ouvinte deve ser doido como ser ao mesmo tempo sensato? Que sensatez doida é essa? De um lado, deve se abrir para o advento da fala, de outro, deve ser como a folha de papel, um vazio silencioso que acolhe a fala das doideiras, isto é, das questões e veredazinhas. É a obra como operar de diálogo e escuta. Mas para que isso aconteça um terceiro aspecto é fundamental: não é qualquer escuta. Não é o escutar os falatórios dos meios de comunicação e tantos outros. Só haverá escuta quando o que se escuta se “pensa e repensa, e rediz”. O que isto implica para o leitor? Para mim, para qualquer leitor, se quiser ser deveras leitor na exigência que dele faz o narrador? É o que subjaz a Grande sertão: veredas e tento pensar neste ensaio. Dissemos: Só haverá escuta quando o que se escuta se “pensa e repensa, e rediz”. Ao nos dizer isto, Riobaldo nos lança fundamentalmente no coração das questões. É para elas que temos que nos voltar e escutá-las. São elas que falam. O caminho da obra, porque é um caminho-questão, tem que ser feito por nós e só por nós. Temos que nos defrontar com as questões. A obra exige de nós o mesmo inter-esse e abertura para elas. Por isso, Riobaldo insiste neste procurar: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (p.15). E o que ele espera de nós leitores? O mesmo. Mas devemos partir do que ele afirma: “Eu quase que nada não sei”. Então a questão é, para nós, leitores, como chegar a saber? A primeira condição é admitirmos os nossos limites, sabermos que as questões são maiores do que nós. Riobaldo continuamente se dirige a nós ouvintes para que o acompanhemos, mas em nenhum momento o ouvinte se pronuncia. No entanto, a obra nos interpela, solicitando nossa participação. Como ela é possível? É a segunda condição: a escuta. Para provocar esta escuta Rosa configura a obra como um contínuo e permanente diálogo. Então a escuta pressupõe o diálogo, assim como o diálogo pressupõe a escuta. Estaremos nós leitores preparados para o diálogo e para a escuta? Para dialogar e escutar não se pode falar sobre, só é possível num ouvir e falar com.

A configuração da obra como diálogo e escuta

A escolha da configuração da obra como diálogo não é algo acidental ou até uma invenção formal, seja na estruturação geral, seja no modo como quer dar forma à narrativa tendo como ponto de vista um narrador em primeira pessoa. Claro que esses aspectos formais estão na obra presentes e é impossível negá-los. Penso, porém, que de maneira alguma é a forma que explica a arte, mas, pelo contrário, a profunda concepção do que é arte é que leva Rosa a optar pelo diálogo como núcleo criativo, onde a escuta é absolutamente inerente ao ser- da-obra como ser-da-arte. Trata-se, pois, da arte enquanto a dupla questão do diálogo e da escuta. Restrinjo-me aos aspectos que considero pertinentes a Grande sertão: veredas.

O círculo da comunicação
No senso comum, dialogar é estabelecer uma comunicação entre duas pessoas. É o que fazemos cotidianamente. Mas há diferença entre comunicação e diálogo. Os referentes que entram no círculo da comunicação são os seguintes:
Um emissor, um receptor, o código, dividido em canal e mensagem. Como fundo em que os referentes se movem, o contexto. Na comunicação, o lugar principal cabe ao código. É ele que permite a ligação entre o emissor e o receptor, e que veicula as informações e conhecimentos. Tradicionalmente, o código se divide em canal e mensagem. Porém, como temos em vista uma comparação com o diálogo, vamos considerá-lo, por enquanto, como o entre emissor E receptor. É ele o lugar do aparecer e parecer. Por isso, tanto o emissor como o receptor vivem em função do código, havendo tanta mais comunicação quanto menor for a resistência de cada um em sua identidade e diferença. De tal maneira que aqui o entre, ou seja, o código, enquanto canal e mensagem, ocupa o lugar central. Não podemos negar que, seja para comunicar informações, seja para comunicar conhecimentos, esta é a conjuntura predominante na vida das pessoas. Porém, dois traços devem ser destacados: 1º. Tanto o emissor como o receptor devem anular ao máximo suas singularidades em favor da objetividade das informações e dos conhecimentos; 2º. Disso decorre que eles se põem de fora e sempre falam sobre o que se informa ou comunica. Isto é possível porque tudo está centralizado no entre enquanto código, pois a linguagem é reduzida a um meio. Mas será que o diálogo se reduz a isso?

O diálogo com o outro: a fala
Se pensarmos o diálogo mais profundamente, vamos ver que no lugar do emissor e do receptor aparecem então um eu e um tu, em suas singularidades, e, ligando-os, a palavra diálogo. Este também é um entre, mas que está para além do código, porque deve dar lugar também ao eu e ao tu enquanto singularidades. Estas também se movem no aparecer, mas onde agora há algo mais: uma fala e uma escuta, ou seja, a presença singular tanto do eu como do tu, enquanto são. Há também um entre, mas agora o código, ao ser singularizado, se torna o que propriamente chamamos diálogo. O entre do código não é o mesmo entre do diálogo. O diálogo é o código singularizado, sem perder o seu aspecto universal, porque se farão presentes tanto a fala como a escuta. Numa conjuntura dialogal, e não mais num contexto comunicativo, o eu se dirige ao tu e este escuta. Todo diálogo, para ser diálogo, implica uma fala e uma escuta. Porém, quando o tu responde, a partir da escuta, o tu se torna eu e o eu se torna tu. O diálogo permite e exige o surgimento desta diferença e identidade, tanto em relação ao eu que se torna também um tu, quanto em relação ao tu que se torna também um eu. Todo eu é o que é e o como é, ou seja, a cada eu corresponde um “isto”, que é o que lhe é próprio, sua essência enquanto identidade. Por isso, todo eu se constitui por uma delimitação interna – sua identidade - , e outra externa, o tu enquanto diferença, ou seja, o outro. Nesta conjuntura, dialogar é sempre falar com o outro. Ao contrário do círculo da comunicação, aqui não é possível falar sobre, pois no e pelo diálogo sempre há um apelo de escuta mútua. O diálogo é um entre diferente do entre do código comunicativo, porque nele se produz tanto uma fala quanto uma escuta. Numa primeira instância, Grande sertão: veredas, enquanto obra de arte, se constitui como um diálogo com o outro, pois todo ele é configurado na fala de um narrador para a escuta do ouvinte ou de cada um que lê a obra. Então a obra é o próprio diálogo. O que é o entre como diálogo? Tudo isto é muito complexo e exige mais algumas reflexões para tentarmos entender mais profundamente a obra.

O auto- diálogo: a escuta
A complexidade do diálogo começa a aparecer pelo simples fato de que, no diálogo com o outro, o tu ao responder, a partir da escuta, se torna de fato também um eu. Significa isso que o eu é também um tu, e que o tu é também um eu. Só que aqui acontece algo mais profundo, na questão das diferenças. Se todo eu é eu e tu, e todo tu é tu e eu, então acontece uma identidade e diferença, uma proximidade e distância dentro de cada um. Além da diferença constituída pelo outro, há também uma outra diferença: a interna. Esta é mais complexa. No fundo, trata-se da identidade positiva e afirmativa. O que sou não me advém pela percepção efetiva do outro, mas pelo que sou naquilo que internamente sou, ou seja, sou esta identidade que eu sou na sua dinâmica interna, afirmativa. Se o diálogo com e a escuta do outro mostram-me o que sou por uma diferença negativa, pois lançam-me nos meus limites frente ao outro, que não sou, já o auto-diálogo e a auto-escuta me lançam numa diferença positiva e negativa ao mesmo tempo ou seja, que sou eu e tu, que sou fala e escuta dentro de mim mesmo, enfim, que sou e não-sou. O eu é e não é. Este não ser é que constitui a segunda diferença, a diferença comigo mesmo, uma vez que sou e não sou. É este não-sou que instala igualmente a proximidade e distância, pela qual até posso compreender a proximidade e distância do outro. Mas como se instala dentro de mim mesmo a diferença? Sem dúvida alguma é no e como diálogo, porque é ele o entre o que sou e não sou. Esse entre como diálogo deve poder produzir ao mesmo tempo uma fala e uma escuta, uma identidade e uma diferença, uma proximidade e uma distância, uma verdade e não-verdade. O auto, o que me é próprio, me advém no diálogo, como fonte originária tanto da identidade como da diferença. Porém, é esse mesmo diálogo, enquanto entre, que também funda o diálogo com o outro, pois ele se faz presente tanto no diálogo-com-o-outro como no auto-diálogo. Contudo, quando agora examinamos os dois diálogos do ponto de vista da identidade e da diferença, da proximidade e da distância, devemos concluir que no auto-diálogo há uma maior proximidade do que no diálogo-com-o-outro. Talvez melhor: que a proximidade com o outro exige necessariamente a conquista da proximidade no auto-diálogo. Se não somos próximos de nós mesmos como poderemos ser próximos dos outros? Por outro lado, não poderemos dizer que a proximidade do outro, se for proximidade, alimenta a minha própria proximidade? Acontece que não podemos falar de proximidade sem a distância, da identidade sem a diferença, do é sem o não-é. Porém, talvez ainda não tenhamos notado que ao falarmos de proximidade E distância, de identidade E diferença, de é E não-é, o que está aí impensado é justamente esse E, que é o entre que se faz presente no círculo da comunicação (emissor E receptor), no diálogo com o outro (eu E tu), no auto-diálogo (o próprio eu que é eu E tu). Mas devemos notar imediatamente que esse entre não é algo que agora se vai acrescentar. Ele sempre se faz presente e funda cada uma das conjunturas, embora, em níveis e realizações diferentes. Esse entre é o próprio diá-logo. Quando Rosa configura a obra de arte como diá-logo em que dimensões está ele pensando o próprio do diálogo como o própria da arte? Contudo, devemos ter bem presente que nas três conjunturas o que igualmente se faz presente é sempre a questão da proximidade. O que é a proximidade? Não será a proximidade a fala e escuta do que somos enquanto diálogo? Não será ela o acontecer do apropriar-se do que nos é próprio? Como fala e escuta, e acontecer do apropriar-se se dão no e como diálogo, na e como obra de arte?

Diá-logo

Como nos afirma Rosa: “O que é para ser – são as palavras!” (p.39), então devemos perguntar à palavra diálogo o que nela é e vem a ser. Ela se forma do prefixo grego: dia- e do radical –logo, de logos, linguagem.

O logos
A palavra logos em grego se forma do verbo legein, que apresenta dois sentidos interligados e complementares: reunir e dizer. Estes se fazem presentes especialmente na palavra diálogo. O logos no âmbito da língua, da arte e do pensamentos gregos é de uma riqueza e profundidade de sentidos quase inesgotável. É senso comum o fato de que o logos é intraduzível. Penso que se, em língua portuguesa, quiséssemos achar uma palavra que tivesse a mesma profundidade e amplitude de sentidos, essa palavra seria, sem dúvida nenhuma, sertão, como é configurada em Grande sertão: veredas. Talvez por isso mesmo a obra seja configurada como diá-logo. E na p. 79, Rosa, partindo do logos, nos diz: “Lhe falo do sertão”. Porém, esta fala nos provoca e convida à escuta. Do quê? “Do que não sei. Um grande sertão”. Rosa só pode falar do sertão a partir do próprio sertão e não de fora, por isso é uma fala cujo sentido e alcance só pode advir na escuta. Uma escuta não só de quem o ouve, mas, em primeiro lugar, ela acontece nele, pois fala do que não sabe. “Ninguém ainda não sabe”. Mas dessa escuta referindo-se ao próprio logos, já nos falou Heráclito no frag. 50: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio corresponder concordando que tudo é um”. Então aqui temos: 1º. O Nonada (Um); 2º. O Infinito (Tudo); 3º. O Logos (o vigor do diálogo como o entre de toda fala e escuta). Então a possibilidade do círculo da comunicação, do diálogo com o outro e do auto-diálogo, enquanto modalidades do diálogo, têm sua origem e fundamento no logos de que nos fala Heráclito. É o logos que se irradia como fonte originária para o código, para o emissor e o receptor, para o eu e para o tu, este enquanto o outro e enquanto o inerente ao próprio eu. Tanto a fala como a escuta, ao fundarem-se no logos, têm neste como silêncio e como o nada de tudo que é e não-é a sua fonte originária. O silêncio, o logos, a linguagem, é a mãe de todas as línguas.

O dia-
Dia- é um prefixo grego que congrega dois sentidos fundamentais: através de e entre. Subjaz a estes dois sentidos um terceiro, inevitavelmente: dois. O através de, de imediato, é entendido como um meio, uma ligação e uma relação entre dois. Porém, para entendermos esse meio, essa relação, teremos que saber o quê na relação se relaciona. É para onde nos aponta o segundo sentido: o entre. Este manifesta mais claramente a relação, o meio. Entre pressupõe sempre dois, senão não será entre. E então o alcance do sentido desse entre será ambíguo: tendo em vista os dois é que saberemos o alcance do entre e até a possibilidade de relação, mas, ao mesmo tempo, o alcance do sentido dos dois dependerá do alcance do sentido do entre. O que parece muito abstrato fica evidente quando retomamos as três modalidades de diálogo. No círculo da comunicação, o entre fica reduzido ao código, no âmbito do qual é entendido. No diálogo com o outro, onde se dá o Eu e Tu, esse “e” é o entre eu e tu. Entre é sempre entre dois, mas ao mesmo tempo que diferencia o eu do tu, ele também é o através de pelo qual se faz a ligação, a relação. Então esse entre é enigmático: relaciona identificando e diferenciando, ou seja, traz em si o poder de, ao mesmo tempo, identificar, diferenciar e reunir. De onde lhe vem esse poder? Se olhamos o segundo diálogo, o auto-diálogo, lá aparece de novo esse entre: o eu E o tu que cada um é e não-é. Se antes o entre tinha o poder de identificar, diferenciar e reunir externamente, agora também identifica, diferencia e reúne, mas internamente. Portanto, é o mesmo entre, sendo, contudo, diferente. De onde lhe vem essa força, esse vigor? Como tal, não podemos dizer que é ele com sua atuação que funda a identidade e diferença dos entes. De onde então lhe advém esse poder de atuar reunindo? Não há a menor dúvida que lhe vem do logos, que é a linguagem. Pois o verbo de onde se origina o logos significa não só dizer, enquanto manifesta o que é e não-é, mas também reunir. No logos e pelo logos os entes, enquanto diálogo, chegam ao ser e permanecem reunidos nele. Numa primeira dimensão o pacto, enquanto diálogo, nos deve lançar e reunir no logos.
Mas pelo fragmento 50 de Heráclito, esse reunir enquanto corresponder ao logos é ainda uma primeira instância, porque ela só se realiza quando nos lança na sabedoria do tudo é um. E é neste âmbito que se dá o pacto em Grande sertão: veredas, claro, não excluindo a dimensão anterior. Como isto se dá? Para entender a profundidade da configuração de Grande sertão: veredas como diálogo e pacto, enquanto algo indissolúvel, tentamos corresponder ao apelo de pensamento do pensador Heráclito, ouvindo o que nos diz no fragmento 123: “A nascividade excessiva apropria-se no nada excessivo” (Physis kryptestai philei). O diálogo enquanto dizer e reunir de identidade e diferença no um e no tudo, nos aparece agora como philei. Ao tudo corresponde a physis, ao um o kryptestai, mas certamente agora no plano do Ser E do Nada, onde se move Grande sertão: veredas. Como vimos, o philei diz, numa tradução simples, ama. A questão é saber o que entender por amar. O sentido originário de philei diz o apropriar-se do que é próprio. Se o diálogo funda a identidade do que somos e não somos, o amar, no dialogar, nos conduz ao apropriarmo-nos do que nos é próprio: o ser. Mas este é o sentido mais profundo do pacto. Rosa ao configurar a obra como diálogo já a pensa a partir do pacto, mas este, e a obra, só encontra o sentido mais profundo ao se realizar como amor. Em última instância é do amor que tudo irradia. Por isso, o diálogo, o pacto, a obra de arte têm seu sentido último no amar. Grande sertão: veredas é todo ele atravessado pela questão que a todas as outras reúne: o amor. E é neste horizonte que este ensaio se propõe também como diálogo, onde dialogar é deixar acontecer o apropriar-se do que é próprio enquanto deixar-se atravessar pelo amor.

O narrar e o sagrado

O encaminhamento das questões em Grande sertão: veredas não estão em ordem linear nem poderia, porque não há uma ordem linear. Todas elas se implicam mutuamente. O esforço deste ensaio – atendendo ao apelo de diálogo e escuta em que consiste a obra – está em expor para o leitor, até onde é possível, o encadeamento, o mais claro possível, dessas questões. Como partimos do pressuposto de que ele fala a partir do logos, enquanto apropriar-se sendo, pois é o motivo que o move, ele o faz desde a primeira palavra da obra, mas só pouco depois, ele se detém explicitamente no que o leva a narrar a narração, que terá a duração de três dias. Por que três dias? O número três é o número do sagrado por excelência. Isso significa que será uma narração do, no e pelo sagrado. Dirigindo-se ao ouvinte, eis a sua justificativa:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossêgos, estou de range rêde. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito ... viver é negócio muito perigoso ... (p.11).

A vida vivida e a vida experienciada
A vida vivida é vida inerente ao código genético enquanto o quê é no como é. Porém, no ser humano é impossível separar o que propriamente é só genético e o que é histórico. Contudo, dentro da vida vivida genético-historicamente há também uma vida experienciada. Riobaldo não nos faz uma autobiografia, mas nos narra a narração do inaugurável que lhe aconteceu enquanto destino.
Riobaldo é uma personagem-questão. Como ficção é personagem de questões e não quer representar nada nem ninguém, muito menos fingir a realidade fazendo mera ficção. Enquanto figura que fala, age e pensa é a poiesis se fazendo questão. Nessa passagem central dentro da obra poética, vemos claramente que estamos diante da questão do duplo Riobaldo, que é a duplicidade de qualquer leitor. Um duplo não paralelo, mas poeticamente circular (de ser o que é e não é no concreto do aparecer). É o que fica claro no primeiro período acima. Há um primeiro Riobaldo que vive a vida no seu fazer e agir: “De primeiro, eu fazia e mexia ...”. É a vida vivida como sertanejo, nas suas andanças de jagunço pelo sertão. O como é só enquanto aparecer. Na vida sendo vivida ainda não se tinha aberto para os “prazos”, porque a vida imediata o tomava completamente. Mas já estavam inscritos nele. Porque Riobaldo é um homem destinado, como veremos. No dia a dia de que ninguém pode fugir, pois nos movemos no âmbito dos entes, embora sejamos entre-ser, era como um peixe vivo no “moquém”. O que é “moquém”? É uma grelha de varas que serve para assar ou secar o peixe ou a carne. Certamente, o moquém é aqui uma imagem-questão do viver o trivial onde a vida se vai dissecando sem chegar a viver as suas possibilidades de plenitude enquanto cultivo da abertura para o ser, do humano do homem enquanto travessia. Por isso, ele logo acrescenta: “ ... quem mói no asp’ro não fantaseia”. É um agir inerente ao código genético como o agir e viver de qualquer ser vivente, onde as ações se sucedem em pro-curas e empenhos de bens que não são o bem. É um viver no cotidiano e prosaico “asp’ro” para superar as necessidades, os “pequenos dessossegos”. A vida apenas vivida manifesta “o que é” “no como é”, sem ainda se dar travessia. Para esta ocorrer é necessário tomar posse dos “prazos”. O que são os “prazos”? Prazo é um tempo determinado; espaço de tempo durante o qual deve realizar-se alguma coisa. Esse sentido dicionarizado não consegue apreender aqui toda a sua força poética, pois trata-se de uma imagem-questão. Que questão essencial nos traz essa imagem? Todos nós nascemos com um “prazo”, o entre-tempo determinado pelo nascimento e pela morte. O “entre” Nada e Tudo, no dizer de Riobaldo. Nesse entre-tempo de Tempo e ser, alguma coisa deve ser realizada. O quê? O destino como travessia. Para tal não basta viver é preciso algo mais, é necessário fazer da vida vivida uma vida experienciada. Nisso consiste o destino como travessia. O que é a experienciação? Ela ainda não se dava porque como diz ... pensar não pensava. Não basta viver, é necessário pensar. Mas o que é o pensar? Pensar é deixar-se ser tomado pela morte como sentido do vigor de eros. Um viver enquanto pensar, como diz Riobaldo “... é negócio muito perigoso”. Eros e Thanatos são a possibilidade de experienciação de todas as nossas experienciações. Experienciar a morte como morte no viver, enquanto eros/amor, é a possibilidade de fazer a travessia e cumprir os prazos, o destino. No arrocho das aporias do cotidiano, como ele diz que vivia: “Vivi puxando difícil de difícel”, não sobra tempo para “fantasiar”. Nessas condições, ainda não eclodiu o poder que é próprio do ser humano: o poder fantasiar. O sentido atual de fantasiar é tanto imaginar como vestir uma fantasia. Porém, a palavra vem do grego phantasia. É um substantivo formado do verbo phaino, que significa manifestar, daí também a palavra fenômeno. Fantasiar é poder manifestar o quê? Fantasiar diz imaginar e vestir uma fantasia. Os dois sentidos não se excluem, integram-se. Revestir-se de uma fantasia como imaginar (isto é, apropriar-se do que é próprio) é realizar a travessia enquanto destino.
Como isto ocorre? Como há aparentemente dois Riobaldos, facetas de um terceiro, um, também há duas vidas: a vivida e a experienciada, unidas para levá-lo à plenitude no e pelo pacto. A vivida é inerente ao que em nós é genético e histórico. Já a experienciada é inerente ao genos como Moira. Porém, esta não consiste simplesmente em viver, mas em apropriar-se do que é próprio enquanto travessia. E o que nos é próprio? O que nos é próprio é o ser. Não simplesmente o ente como vida vivida, mas o ente enquanto ser na vida experienciada. Na vida experienciada não é o ente o sujeito. Não. Ela consiste em deixar-se ser tomado pela morte como sentido e vigor do viver, enquanto eros, então surge a unidade. Fazer a travessia é deixar-se ser tomado pela morte. Então o morrer não é um fim, um término da vida, mas a vida potencializada pelo não-ser, pelo nada, pelo vazio, no vir-a-ser em que consiste a travessia como destino. Esse vir-a-ser é sempre um ser-do-entre, um entre eros e morte. Onde a medida do ser é o não-ser, onde a medida de eros é a morte. Nesta experienciação não há mais dois Riobaldos, mas um único trans-figurado por um outro agir. Aos dois Riobaldos correspondem dois agires, onde um busca, no fundo, o outro para o manifestar numa realização única enquanto travessia. O que vigora aí, portanto, é a tensão abismal do “entre”, enquanto o “mesmo’.
Aos dois Riobaldos corresponde uma mediação, de dupla medida. A dupla medida é inerente a nosso ser ambíguo, como ser-do-entre. Ultrapassado o horizonte dos “pequenos dessossegos, estou de range rêde”. O que a imagem-questão rede nos quer provocar a pensar? Na rede acontece a quietude do silêncio do pensar. Mas, no ranger, o pensar se faz um ir e vir, remetendo-nos, enquanto pensar, para um questionar, um diferenciar e um dialogar. O que é pensar?

Sabemos que pensar vem de pensum, particípio passado do verbo pendere. Significa, portanto, pendido, pendurado. Formou-se, já em latim, o substantivo pensum, que diz em sentido derivado a tarefa, o encargo e, em sentido próprio, a quantidade de fio de lá que se pendura para a tarefa de tecer e fiar durante a luminosidade de um dia ... A concentração da articulação da tecelagem remete sempre, de alguma maneira, para além dos fios, para a tessitura, para a totalidade de integração que a tessitura realiza em silêncio (Leão, 1999: 246).

Pensar é também aplicar um curativo e, neste sentido, cuidar com o cuidado amoroso. No “range rede”, pensando, ele cuida. Do quê? Do a-ser-cuidado, das questões que o têm. Riobaldo se entre-tece como pensamento no silêncio da quietude da rede do ranger, do viver a vida perigosa. E o que ele entretece ao se entretecer? Diz: “E me inventei neste gosto, de especular idéia”. Especular vem do verbo latino speculare, que diz pensar no sentido de re-fletir, enquanto se abrir para a abertura e deixar advir a luz. Por isso, o verbo deu origem à palavra espelho, o que reflete quem ou o que se olha como imagem, onde o espelho não é a imagem nem quem ou o que se olha, mas a mediação enquanto lugar da luz pela qual algo se torna visível. É a clareira. Por outro lado, devemos dizer que os quatro se im-plicam. O que no especular ele re-flete pelo advento da luz na abertura da clareira? Refletir é alguém deixar emergir na abertura a luz da reflexão enquanto medida, onde a luz da reflexão é a própria medida, na medida em que se procura a medida do que é próprio e se dá na abertura. Medida aí não é jamais paradigma nem qualquer luz. “Iluminar é mais do que só clarear, mais do que só liberar. Num pensamento que medita o sentido e numa reunião acolhedora, iluminar é conduzir algo para o livre, conceder vigência” (Heidegger, 2002: 244). Então a luz da reflexão só aparentemente é um exercício de quem reflete. Nessa ação, quem age é tanto quem reflete a partir da luz que se dá na abertura enquanto reflexão quanto o que se procura na reflexão: a luz enquanto a medida. No especular o que advém é o eidos/idéia, mas quem a doa é a luz enquanto a medida do especular, o que media o especulador na busca do que é em sua reflexão a partir de e na abertura. Especular é um saber do ser, mas tanto um como outro são doação da medida advinda na abertura. Por isso, a medida é o não-ser do ser enquanto se doa no vir-a-ser do que especulando se especula a partir da abertura. Em Grande sertão: veredas a abertura será o lugar do pacto, a entre-cruzilhada das Veredas Mortas, que depois se tornam Veredas Altas. Especular é sempre se experienciar na ambigüidade do entre, o espelho. Especular é dialogar em seu sentido profundo.

O diabo como questão e o ser-da- arte
Riobaldo especula “idéia”. Que idéia ele especula? Isto é, qual será a idéia que será o Leitmotiv de seu especular? A idéia é uma questão. Então para ele especular idéia é perguntar questionando: “O diabo existe e não existe? (p.11). O que Riobaldo nos quer fazer pensar? Que questão aí se manifesta? Examinemos com cuidado. Nós temos aí propriamente três questões inter-relacionadas, partindo de uma que lhes dá princípio: O que é o diabo? 1ª. O diabo existe?; 2ª. O diabo não existe?; 3ª. O diabo existe e não existe? Dependendo da resposta à questão originária é que podemos encaminhar as respostas às três. A ambigüidade e complexidade da originária é que torna igualmente ambíguas as respostas às outras. A complexidade da questão matriz está no fato de que a ela estão correlacionadas outras questões essenciais, sendo a principal o pacto. Mas tentar responder o que é o pacto é questionar o que no pacto se pactua. E tentar saber o que no pacto se pactua é perguntar quem intervém no pacto, quem são os pactários, e saber a partir do que ou de quem os pactários podem pactuar. É isto que vai sendo distinguido e diferenciado ao longo de Grande sertão: veredas. Tudo isso constitui, no fundo, a sua matéria vertente, como diz numa passagem essencial. Rosa é um pensador, e dos mais profundos. Por isso, todas essas questões giram em torno de três, que constituem o a-se-pensar e o a-se-cuidar como fundo de todas as grandes obras dos grandes pensadores e poetas. A obra de Rosa é uma profunda poesia-pensante e se alça ao mais alto nível de pensamento-poético. Sua obra pensa e repensa as profundas referências de ente, entre-ser e ser, enquanto caminho das três vias-veredas. É no vigor e como vigor destas referências que se coloca a questão do dia-bo. O prefixo da palavra é também dia-, o mesmo de diá-logo, no qual e a partir do qual todo Grande sertão: veredas está configurado. Assim sendo, tudo o que dissemos até agora e que ainda diremos já estará, de alguma maneira, encaminhando uma tentativa de compreensão do enigma que é o dia-bo. Encaminhar esta compreensão de Grande sertão: veredas é já trazer à reflexão um esforço de compreensão do que é o ser-da-obra de arte pela compreensão do ser-da-arte.

O narrar inaugural
Logo depois que Riobaldo faz esta pergunta complexa em torno do diabo, vem uma afirmação, e não mais pergunta, compacta e estranha: “Dou o dito” (p.11). Que dar é esse e que dito se diz? Qual a referência entre dar e dizer? Tentar compreender o “Dou o dito” deve partir, necessariamente, de algo inequívoco: Quem nos fala e narra é o Riobaldo pactário. Numa compreensão imediata e simples, ele só dá o que lhe deram: “o dito”. Que dar e dito são estes? E o que isso tem a ver com o diabo e com o pacto?, pois na ordem da narrativa, tais palavras seguem imediatamente a essas questões.
Vejamos: “Dou” vem do verbo latino dare, que significa em primeiro lugar: dar, estando ligado ao sagrado. É um dar consagrado e consagrante. Essencialmente no dare está a doação, o presente, a oferenda da divindade aos homens e dos homens à divindade. Uma tal doação do sagrado aos homens é que diz, em latim originário, o verbo dare/dictare. Esta doação do sagrado apresenta duas facetas interligadas essencialmente: o doar como ação de sentido. O sentido é a linguagem. Mas não podemos simplesmente reduzir o dare/dictare à linguagem, pois esta está profunda e misteriosamente ligada ao dar enquanto ação. Esta ação, a poiesis, é o vigor do sagrado na voz dos deuses. E é nesse sentido que vai ser em Rosa entendido o contar e narrar, ou seja, como ele diz: “Dou o dito”. Este vem do verbo dictare que é um doar enquanto ação de sentido como linguagem aos seres humanos. O doar, como ação de sentido, implica não apenas um narrar inaugural (doação dos deuses aos augures, aos pactários). Ele concentra essencialmente o próprio manifestar-se (ação poética) da verdade (sentido) do ser no ente. O narrar é originariamente um deixar manifestar, um deixar trazer para fora. Quem deixa? Aquele que é possuído pela luz do sagrado enquanto pactário. O deixar vai nos enviar para a dimensão do agir como uma doação que compete a nós receber por ação do sagrado. Uma tal doação do sagrado, que compete a nós receber como sentido do que se manifesta e desvela enquanto linguagem, é: poiesis, ou seja, o manifestar que é a essência do agir, porque nela o sentido do ser se dá. Poiesis é o sentido do agir enquanto sentido do ser, o pleno agir enquanto repouso em si, inerente ao operar da obra. Poiesis, enquanto essência do agir com sentido (linguagem), diz respeito a toda e qualquer criar. A essência do ser humano provém da essência do agir na medida em que este é dizer inaugural, daí o sentido poético-ontológico da arte e não meramente estético, retórico ou ideológico. Porém, o vigor e o aberto da poiesis, como linguagem, se dão também e essencialmente como narrar inaugural. Este é a fala dos deuses que é recebida pelos augures/poetas. O narrar inaugural funda o nomear. O dizer, o narrar inaugural e o nomear se fundam na poiesis, enquanto ação de manifestação (poiesis) e sentido (linguagem). Tudo isto é comportado pelo dizer do sagrado.

A poética do sagrado
Então o que Riobaldo vai nos narrar de modo algum é qualquer narrar. Ele dá como algo consagrado o que lhe foi dado pelo próprio sagrado. Daí quando acontece o pacto: “As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabe é no brilho da noite. Aragem do sagrado” (p. 319). Isto prova que o sagrado percorre de princípio ao fim a obra. Então o seu fazer poético, a sua poética é uma poética do sagrado. A Poética do Sagrado, em que se funda Grande sertão: veredas, diz respeito originariamente às diferentes experienciações de pensamento: míticas, artísticas, religiosas, filosóficas, místicas, metafísicas. Estas são o estofo de Grande sertão: veredas. A Poética diz essencialmente respeito ao sagrado como vigor de todo agir (poiesis), em que a realidade se manifesta em mundo e verdade. Já o pensar é deixar-se ser tomado pelo vigor do sagrado, é deixar acontecer no ordinário o extraordinário, é deixar ver no visível o invisível, é deixar advir no saber o não-saber, é deixar realizar-se no ser o não-ser. O sagrado é o que há de mais originário e misterioso naquilo que, de uma maneira muito pobre, nomeamos, seja realidade, seja mundo, seja imanência, seja transcendência, seja diferença, seja identidade, seja Ser, seja Nada, seja Deus, seja, enfim, Divindade. A essência do sagrado é a poiesis, é o próprio vigor de todo criar, é a ação. Por isso, ela vige tanto no kaos como no kosmos primordiais, tanto no eclodir como no velar-se, tanto em eros como em thanatos. Criar poeticamente é manifestar a presentificação do sagrado como a memória de todas as memórias (criações), porque a memória como memória é o cuidado do uno. Cuidar do uno é salvaguardar no ente o ser. Como? Deixando-se possuir pelo pacto do sagrado. É o grande acontecer de Grande sertão: veredas.

A memória (uno) como amor
Se ao dizer: “Dou o dito” (p.11), na densa passagem, acima comentada, Rosa já nos assinala a proveniência da sua narrativa e de tudo o que nela acontecerá, em termos da obra como um todo, somente nas páginas 78 e 79 é que ele irá estabelecer o horizonte das questões em que ele entretecerá a poética de Grande sertão: veredas. Na página 78, a carta de Nhorinhá, como as madeleines de Proust, o mergulha nas seguintes questões: Amor, tempo e memória. Estas questões o levam a querer, em sua narrativa de auto-diálogo, “...decifrar as coisas que são importantes ... a matéria vertente ... entender do medo e da coragem ... dar corpo ao suceder” (p.79). Jogados no entre nada e tudo, temos que dar corpo ao suceder. Dar corpo é experienciar a referência sempre enigmática das questões de entre-ser. Mas a questão das questões, da qual todas as demais brotam, é: o grande sertão. Quando se pergunta a um leitor comum qual é o enredo de Grande sertão: veredas, certamente irá responder que é um romance que trata de um possível pacto que o jagunço Riobaldo fez com o diabo e da sua paixão por outro jagunço, Diadorim ou Reinaldo, que no final quando morre, se descobre, é mulher disfarçada de homem. No enredo já aparecem as duas grandes questões que perpassam a obra. Mas aquelas questões em que o pacto e o amor, aparentemente homossexual, estão inseridas, essas não são tão evidentes. No entanto, é à luz delas que podemos dimensionar e tentar compreender tanto o pacto como esse amor, porque é o pacto do amor: a memória do uno.

O destino
“Então era mesmo meu rumo – aceitei – o destinar” (p.57). Tudo o que acontece em Grande sertão: veredas tem como horizonte o destino. O destino é maior que o homem. Realizar o humano do homem consiste, para Rosa, em responder e corresponder à fala do destino. Este Leitmotiv a todo momento volta, pois a questão é maior que o homem. Ele é manifestado em diferentes situações e até com diferentes palavras: rumo, acaso, aviso. Mas devemos imediatamente nos desfazer da idéia vulgar de destino. Muito mais do que algo externo, ele vigora como uma fala que fala dentro de cada um. O destino é o dizer do sagrado o diá- do logos. Mas este diá- não tem o vigor em si, ele o recebe do logos enquanto philei. Por isso vai estar ligado ao diabo: “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem ...” (p.11). Se, por um lado, o destino tem sua força de manifestação, como diabo, em Satanaz, na tensão de ser e não-ser, de outro, o mesmo destino vai estar ligado a Lúcifer, ou seja, ao conduzir à luz, enquanto a manifestação do sagrado, enquanto este é amor que reúne. Por isso, o momento mais importante do destino, em Grande sertão: veredas, se dará com a realização do pacto. Contudo, o destino é ambíguo e se concretiza no pathos, ou seja, na paixão arrebatadora, onde convive concretamente o profundo prazer e alegria e a profunda dor e medo. Por isso, assumir o destino é deixar o pathos acontecer enquanto coragem. Como não depende de nós sermos possuídos pelo pathos, mas é ele que nos tem arrebata., para realizar o destino é necessário a coragem. O destino, vivificado no pathos, que é mais interior a nós do que nós somos interiores a nós mesmos, concede também a coragem que leva a superar o medo da dor inerente ao pathos, enquanto o que se tem que ser e não se sabe. Então o destino se dá como ser, aparecer, não-ser: diabo, dor e medo. Vigorando no destino, somos impelidos ao pacto. É a adveniência e manifestação do sagrado como amor. Um tal pacto é sempre um pathein mathein: pois é o próprio destino como coragem, na qual se dá a prova pela experienciação do sofrimento que dá origem à sabedoria (Chantraine, 1974: 861). É neste horizonte do destino que se pode apreender o persistente Leitmotiv de Grande sertão: veredas: “Viver é muito perigoso”. Experienciar o destino é, na misteriosa excessividade poética da Physis, apropriar-se do que é próprio (philei), enquanto o velar-se (kryptestai) do nada excessivo.

A iniciação e o pacto
Todos somos destinados e pactários, em diferentes níveis. Cada um tem o seu quinhão, a parte da partilha dentro da excessividade poética do real. Possuídos pela questão do destino, não sabemos o que nos foi destinado. Vivemos como cegos buscando a luz que já temos. Mas os avisos nos são dados. Quem tem ouvidos para a escuta do silêncio e olhos para o ver do que se mostrando se retrai e vela? Riobaldo é a imagem-questão do destino, do assinalado. Por isso, na economia da narração, logo depois de nos conclamar à escuta do grande sertão (p.79), começa a nos iniciar na (sua) iniciação que culminará no pacto.

O rio e a travessia
O encontro com o Menino, Rosa escreve com maiúscula, pois se trata da questão da passagem da infância para a travessia da vida, no porto do Rio de Janeiro, e a travessia do rio S. Francisco destacam-se, sem dúvida, no todo da obra. Que é um rito iniciático é evidente. Numa ordem não cronológica, mas poético-ontológica, aí se dá o princípio e o início do “isto” que constitui como tal o que no narrar se narra. E é este “isto” que agora nos interessa, restringindo-nos aos aspectos que lhe são essenciais.
Hoje, as festas dos quinze anos perderam seu sentido sagrado. Neste caso, a sua presença se faz pelo aspecto religioso. Em torno dos catorze anos, Riobaldo recolhia dinheiro para cumprimento de uma promessa da mãe. E observa: “Outro meu tempo, então, o que é que não havia de ser?” (p. 80). Onde acontece esse seu outro tempo? Num porto de um rio afluente do S. Francisco. O nome? Rio-de-Janeiro. O nome Janeiro se origina do personagem-questão mitológico: Janus. É um deus de duas cabeças ligado ao tempo enquanto sucessão da vida: uma que olha para trás e outra para a frente, ou seja, indica o tempo de passagem entre passado e futuro, entre fim e começo. E de repente se dá o encontro com o Menino. E logo se dá o Pathos: empatia, simpatia e paixão. Por quê? Porque “... fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga” (p. 81). Embora jovens, ali acontecia algo originário: a conversinha “adulta e antiga”. O Menino, Diadorim, irrompe na vida de Riobaldo como a grande força iniciadora e transformadora, a própria força do destino. E é neste horizonte que deve ser entendida a personagem-questão Diadorim. Pois, como diz Riobaldo: “Eu estava indo a meu esmo” (p.81). É que o Menino o convida para passear de canoa e Riobaldo sabe que algo está para acontecer, pois diz: “Sentei lá dentro, de pinto em ovo” (p. 81), iniciando-se no futuro nascer no e com o pacto. E, em viagem, o Menino abre seus olhos para que mire e veja a manifestação da vida em seu esplendor. Chegados ao São Francisco, Diadorim ordena ao canoeiro: “Atravessa” (p.83), pois é ele que comanda toda a iniciação da travessia. Ele aparece como esta força que impele Riobaldo para a travessia. É a força do dia-dor(im), tendo em vista o medo do desconhecido em que se constitui o destino, daí dor. É a força do pathos que, destinalmente, vigora dentro de Riobaldo, naquilo que para ele implicará: dor. Ele se constituirá para Riobaldo numa contínua ascese de renúncia para fazer a travessia da vida enquanto ascensão para o acontecer da divindade do dia e da luz, como veremos. Diadorim não é essa outra luz, participa de outra divindade: “Via os olhos dele, produziam uma luz” (p.83). Os olhos de Diadorim “... pegavam um escurecimento duro” (p.84). Por quê? Impulsionado por ele, Riobaldo é jogado na travessia, mas sente medo. Não se trata de um medo meramente físico ou psicológico. É o medo da travessia da vida para a outra margem: “Longe, longe, com que prazo se ir até lá?” (p.83). E o Menino o ensina: “Carece ter coragem” (p.83). Isso não impede que Riobaldo, em meio à travessia, concretamente, não tenha medo, mas agüenta o olhar do Menino e este encontra motivo para aumentar a sua coragem. Os olhos dele “... foram ficando bons, retomando o brilho” (p.84). E têm o primeiro contato, quando o Menino pôs a sua mão na dele. O pathos acontece e Diadorim afirma: “Você também é animoso” (p.84). Diadorim é a personagem-questão da própria força vital originária. É a presentificação da força zoogônica sagrada. Daí nele/a acontecer uma luz diferente. Esta insistência de Rosa na luz diferente dos olhos de Diadorim não quer nos levar a pensar as energias pulsantes da vida nos elementos em que elas se dão? Elas estão bem presentes no rito de iniciação: é a natureza enquanto terra e água (aqui seria melhor usar o termo grego Physis, a nascividade, a excessividade poética). Quando Diadorim afirma a Riobaldo que também ele é “animoso”, o apreende e compreende como sendo também portador da força zoogônica sagrada. Nesse instante acontece em Riobaldo a iniciação, pois diz: “Amanheci minha aurora” (p.84). Em seguida há a prova da coragem de Diadorim. E ao final ele afirma: “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente... “ (p.86). Dia-dor-im é um mediador, um enviado do pai que, no parecer não mostra o que é porque é o vigor do que parecendo não é. Diadorim é o encoberto, é “(a)letheia”. Só a Riobaldo revela seu nome, pois no bando é conhecido como Reinaldo: “Que é que é um nome? Nome não dá. Recebe. Da razão desse encoberto...” (p.121). Nele já está inscrita a “lethe”. Se olharmos Diadorim a partir do auto-diálogo, veremos que ele é a força zoogônica originária e sagrada que funda o ser e não ser de cada um de nós, e na obra e como obra de arte, em Riobaldo. Por isso, este pode dizer: “E eu não tinha medo mais” (p.86). Acabou a iniciação. Mas há ainda dois aspectos importantes a destacar. Riobaldo pede a nós leitores, ao ouvinte, que escute desarmado de preconceitos e que escute mais do que está dizendo. Isso não se pode entender num âmbito racional psicológico ou físico. Por quê? “O sério é isto ... -: eu não sentida nada. Só uma transformação, pesável ”. Ele foi tomado pelo poético-sagrado e não é o resultado de algo racional ou imaginário. Independe do sujeito em que a iniciação aconteceu. Foi o pathos sagrado. Este pede de nós, leitores, uma escuta do silêncio: “Muita coisa importante falta nome” (p.86).
Para terminar esta parte importantíssima, devo ainda notar que o rito se passa em dois lugares diferentes, embora inter-ligados: A travessia se dá na água e a prova se dá na terra. Por isso o sertão conjugará sempre água e terra. Sabemos que a água sempre esteve ligada à origem da vida e sabemos também da importância dela nos ritos de purificação e batismo. O rio e o lugar onde acontece a prova, um “... lugar mais salientado, com pedras, rodeado por áspero bamburral” constituem o aberto da clareira onde melhor pode acontecer a luz da manifestação do sagrado. A subida a um lugar alto para receber a luz do sagrado é freqüente. Esta clareira prenuncia o segundo grande momento no destino de Riobaldo: o acontecer do pacto. Ele se dará num lugar que, dependendo do tempo, receberá também dois nomes: Veredas Mortas e Veredas Altas. “Um sitiante ... explicou que ... se chamava ... não era Veredas-Mortas, mas Veredas Altas” (p. 455). Por quê? A paisagem “geográfica” da obra é transfigurada pelo poder poético. O próprio Rosa o diz: “Nome não dá. Recebe” (p. 121). Mais que os nomes são as palavras: “O que é pra ser - são as palavras!” (p.39).

O sagrado: o bem e o mal
No fundo, ao narrar como vida experienciada a vida vivida, é que ele vai-se dando conta da presença determinante do destino. Por isso, logo depois do encontro, se pergunta: “Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino?” O questionar aqui é tão radical, que o que ele quer saber, a questão do destino “... nem o compadre meu Quelemém não me ensina” (p.86). Esta referência a este personagem-questão é significativo, porque ele ocupa um lugar especial, no que diz respeito ao aspecto religioso. Então o emprego da palavra “compadre” é importante porque indica o segundo pai depois do biológico, isto é, é o outro pai que surge no rito de iniciação e batismo. Ele é que, propriamente, é o responsável pela educação e segurança do filho no aspecto religioso. Certamente o nome Quelemém está ligado à corruptela popular do nome Clemente. Nele e por ele o sagrado exerce a sua clemência, pois a questão que acompanha as indagações de Riobaldo está ligada à culpa. Na obra, porém, esta questão está ligada à questão do destino. Ocorre que Riobaldo vai apreender a manifestação do destino ligada ao sagrado, daí ser para ele tal manifestação a grande questão, porque ela se faz presente na vida das pessoas como mal e bem, daí a ligação com o diabo. Mas acontece que não há uma ligação direta entre culpa e mal, conforme ele narra através de numerosos exemplos. Coincidem na opinião de que se deve caminhar para a iluminação como manifestação máxima do que se é na alegria e como amor. Para Riobaldo, a explicação da sucessão do mal, pela qual uns devem pagar por outros como processo de purificação e iluminação, tem um porém: “Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para pecados e artes, as pessoas – como por que foi que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre meu Quelemém, também” (p.14). Eu creio que o grande pensamento que percorre a obra – no que diz respeito à questão do bem e do mal - não pode ser vista de um ponto de vista moral, como é costume, mas do ponto de vista poético-ontológico, ou seja, é a questão ética. Por isso vai estar ligada ao destino e à travessia. A questão ética, muito mais do que uma questão de saber, é uma questão de sabedoria e esta se dá na tensão de ente, ser e não-ser, na medida em que o ente tem que ser apreendido a partir de uma escuta e abertura para a adveniência do sagrado, daí a iniciação e o pacto. Mas isto não pode ser decidido com a razão. Exige o deixar-se ser atravessado pelo sagrado. Há aí uma tensão entre o ser escolhido pelo destino e o se abrir para a escuta e atuação do destino.

A questão do humano
Agora, como e por que isso se dá, não dá para saber. Por isso acrescenta à afirmação acima transcrita sobre Quelemém: “Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal” (p.14). Esta posição é reforçada pela passagem nuclear, já comentada e até repetida, pois se presta a diferentes enfoques, da página 79: “Lhe falo do sertão ... Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas”. Esta repetição é necessária, porque a questão é maior que o homem. É importante que o leitor compreenda que a busca de Rosa é entender algo muito simples e radical: não se trata de grande especulação teológica ao insistir tanto na questão do diabo e do pacto. Não se trata de achar nenhum fundamento último e transcendente. Muito menos se trata de querer imitar o mito de Fausto ou qualquer outro autor. Se influências há, e há pois o que rege a vida é uma memória imemorial fundada no sagrado, seja ctônico-telúrica, seja urânico-diurna, elas são absolutamente transfiguradas no questionar, diferenciar e dialogar com as questões de um modo geral em Grande sertão: veredas, mas, sobretudo, com aquela que é a diretriz que subjaz a todas as outras: o humano do homem. O que é o humano? Ninguém ainda não sabe, só umas raríssimas pessoas e só essas veredas, veredazinhas. Nas veredazinhas é que nos advém o que o humano é a partir de dentro e no ser-tao. “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (p.52) O Nada e o Tudo não são questões. Questão é o humano do homem que está e é No-Nada, isto é, é e está entre o Nada E o Tudo (sinal de infinito no final). Por isso, o humano SE dá na Travessia, nas veredazinhas. E estas se dão na vigência do diabo, é o que responde Riobaldo, quando Diadorim lhe pergunta: “Você sabe do seu destino, Riobaldo? ... Se nanja, sei não. O demônio sabe...” (p.150). Por isso, o destino como destino não é questão, mas, sim, o sermos destinados e a sua manifestação na nossa travessia como realização – porque não sabemos o por quê de sermos escolhidos e nem o que ele ao nos escolher quer conosco como tal. Mas há uma verdade: “Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima” (p. 74), para as “Veredas Altas” (p.455). Daí a dúvida e reiteração da questão do diabo e do destino. O destino, todos temos de uma maneira ou de outra um destino, não se torna questão para todos. E isto é que é o estranho. Por isso, talvez, Rosa se refira às raríssimas pessoas. O mais interessante é que ele convida insistentemente, num apelo de diálogo fundamental, para que o ouvinte e nós leitores, como ouvintes, nos deixemos também atravessar pelas questões.

Da iniciação ao pacto

O cronológico
Não se trata em Grande sertão: veredas de uma auto-biografia, onde tudo é regido por lembranças cronológicas. A historiografia, sobretudo das formas literárias, parte de uma interpretação linear do tempo onde se agrupam em seqüência a sucessão de fatos ou formas. É uma visão superficial do tempo e da obra de arte que não se abre para a dinâmica do tempo originário se dando e retraindo como época. Para compreender o tempo poético-originário, temos que nos abrir para o vigorar da memória. É o que nos diz Rosa. “Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive ... hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe” (p.78). Que horas antigas são essas senão a memória poética? Em outra passagem, vai nos dizer: “Agora: tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso” (p.134).
Quando se lê a obra como um todo e se – tendo a obra toda digitada – começássemos a recortar as diferentes passagens pondo-as na ordem cronológica dos acontecimentos, certamente iríamos constatar algo muito simples: tomando o ritual da iniciação de Riobaldo e Diadorim no rio como ponto de partida e depois fôssemos acoplando os demais fatos, veríamos que a obra está dividida em três grandes momentos. O primeiro momento. Este começa com o rito de iniciação e vai até o momento em que Zé Bebelo perde o rumo não só da condução do bando como também o da luta contra Ricardão e Hermógenes. Nessa primeira parte, dá-se a história de Riobaldo, o que lhe aconteceu depois que a mãe morreu, como foi estudar, em seguida tornou-se professor de Zé Bebelo, a sua entrada e participação nos diferentes bandos de jagunços, a prisão e julgamento de Zé Bebelo. Este julgamento é um marco divisório entre a lei antiga e a lei nova. Ricardão e Hermógenes não aceitam o julgamento e ficam com a lei antiga, e, em conseqüência disso, matam Joca Ramiro. Segundo momento. E então se inicia uma segunda parte: a perseguição implacável aos assassinos. As chefias se sucedem e nenhuma consegue acabar com Hermógenes. Nem Zé Bebelo. Por quê? Devemos entender que para vencer Hermógenes, como personagem-questão, é necessário o pacto, e não apenas fica no nível dos homens. E então Rosa, numa sutileza extraordinária, com a mudança de apenas uma letra num verbo, nos coloca diante do sentido profundo do pacto. Diz: “Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado” (p.16). O leitor que preste atenção aos dois verbos, sabe imediatamente que significam coisas completamente diferentes, embora soem iguais. No contexto da obra, já se localiza aí a diferença radical do agir desses chefes – “Esses homens” – e de Riobaldo. E a diferença está não só no significado dos verbos, mas também no sentido de outras duas palavras: “Querer” e “principiar”. O consertar, enquanto transformar e mudar, baseia-se no querer e poder deles. Já o concertar não depende da vontade de quem concerta. Para concertar é necessário abrir mão do querer e ser tomado pelas musas. Só assim há o concertar concertado. Mas para isso deve haver o pacto, como veremos. Então a questão do consertar ou concertar depende de por onde “principiar”, isto é, pelo poder humano (consertar) ou pelo poder sagrado (concertar). Devemos entender que nesta sutil mudança está a essência do pacto. Como entre-ser, o ser humano já vigora no poder do pensamento poético. Porém, não devemos confundir pensar com raciocinar nem poesia com retórica. Todos os chefes que precedem Riobaldo são dominados pelo poder do querer do homem e têm como única tarefa vencer Hermógenes. Não conseguem. E o máximo desta racionalidade se consubstancia em Zé Bebelo, pois dele diz Riobaldo: “Ah, mesmo só inteligência, só, era que era aquele homem [Zé Bebelo]” (p.327) Zé Bebelo, vencido e julgado por Joca Ramiro, se exilou. Ao saber da traição de Hermógenes, volta e toma a chefia dos jagunços e a tarefa de acabar com Hermógenes. Não consegue, porque ele se guiava apenas pela razão: Ele é o personagem-questão onde a razão e seu poder se fazem presentes de uma maneira plena. Raciocina, mas não pensa. E o que lhe acontece? Nunca consegue travar a luta com Hermógenes, é uma questão no plano do sagrado e da arte, e não simplesmente uma personagem literária enquanto símbolo do mal. A arte não é feita de símbolos, mas de vida e morte movida pelo pathos de eros. Zé Bebelo acaba perdendo o rumo e vai parar num lugar chamado Coruja. O terceiro momento. Ali vai acontecer o pacto. Com este se inicia a terceira e última parte da obra e nela há uma característica singular. Todo o narrar se dá numa seqüência praticamente linear. Isto é mais que claro. Do ponto de vista narrativo, o que acontece antes do pacto fica à mercê da vontade humana e dá-se necessariamente às apalpadelas, numa procura confusa e difícil, porque são ações só guiadas pelo poder da razão. Depois do pacto, não. Porque desde esse momento, Riobaldo não é o que com sua vontade e poder toma as iniciativas e decisões. Ele sabe que um poder maior o guia. Por isso, ele nunca planeja as viagens. Elas vão acontecendo num acontecer destinado. E a prova de que não se serve mais da vontade humana e da razão está em algo muito simples e sintomático. Enquanto os outros chefes sempre tinham outros sub-chefes experimentados e valentes, quem são eles agora para Riobaldo? Quem fica à sua direita e à sua esquerda? Um menino e um cego. O menino é o in-fante, mas por isso mesmo o aberto para o silêncio da linguagem como possibilidade de criação inaugural. E o cego? O que não vê, porque nele acontece um outro ver, além da luz da aparência e da luz da razão. Do auxílio deste ver, Riobaldo, o pactário, não precisa. Por outro lado, o cego, desde a figura-questão Édipo, como figura-questão do homem, torna-se a encarnação da sabedoria. De Borromeu diz Riobaldo: “Ele gostava de conversar, mas também preparava no silêncio” (p.339). É claro que não precisa ser cego para ter esta sabedoria, ela pode advir, como adveio para Riobaldo, no pacto. É o ver poético-sagrado. Há ainda um outro ver, enigmático e também sagrado, o de Dia-Dor-im: o ver ligado às musas telúrico-ctônicas, à mãe-terra. Depois do pacto, Riobaldo se torna o Chefe. Se o leitor acompanhar com cuidado e atenção o que vai acontecendo, verá que o itinerário de Riobaldo será da escuridão para a luz, mas sem dicotomia nem separação. Sem anular as diferenças, Riobaldo é síntese, como entre-ser, do urânico e do telúrico, de Zé Bebelo e de Diadorim. Por isso, neste per-curso e senda da verdade, Diadorim “desiste” da vingança do Pai e se entrega e integra a Riobaldo, que assume a causa: ”Menos vou, também, punindo por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, Riobaldo, no querer e cumprir” (p.404). Mas por quê? Diadorim o diz: “Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o que sabia ...” (p.403). O saber que integra e diferencia advém a Riobaldo no e pelo pacto. Os primeiros deslocamentos ainda se dão dentro da noite, até que de repente passa só a se movimentar de dia. Como Riobaldo não é mais guiado pela razão, suas ações são fora do usual enquanto ordinário, porque, na verdade, agora está se guiando e movendo no e pelo extra-ordinário. A travessia fácil do liso do Sussuarão é uma prova. São as conseqüências do pacto.

O pacto
. Aqui o ouvinte-leitor é chamado para uma abertura essencial. Se, educado e formatado na idéia moderna profana e secular das manifestações do sagrado como algo supersticioso, nada entenderá do que aqui nos é solicitado a pensarmos. Três preconceitos iluministas e metafísicos devem ser questionados: a) Que o sagrado se reduz a um religioso ritualizado e vazio, a crenças prévias ao acontecer do sagrado; b) Que os mitos são formas mais antigas de superstições religiosas; c) Que a arte nada tem a ver com o sagrado e se reduz ao belo estético, ao estudo das formas e às classificações das obras em gêneros, a meios ideológicos de engajamento, a representações de identidades culturais. Pacto, quanto ao significado semântico, qualquer dicionário nos dirá que é um contrato entre duas ou mais pessoas ou até entre nações. O pacto de que trata Grande sertão: veredas nada tem a ver com tudo isso. Nele predomina o sagrado, como está sendo entendido neste ensaio, pois a obra inteira se move no mítico-poético:

O verbo correspondente ao substantivo mito é mytheomai, que significa abrir, desocultar pela palavra, falar ou dizer que pronuncia e revela o que advém no som e no sentido. E o verbo relativo ao nome mistério é myein ou myeisthai, com a significação de fechar. A raiz my- pronuncia-se com y longo, figurando no latim mutus e no sânscrito mukas (=mudo, silente). O mito do desvelamento do ser é suspenso do mistério do velamento do não-ser. Poetar ou pensar originariamente quer dizer suscitar orficamente a excessividade do silêncio (Souza, 2002: 30)

Os pactários
De um lado temos Riobaldo. E do outro? Com quem ele dialoga? Toda a complexidade que assume o pacto na obra vem da dificuldade de responder a esta pergunta. Em princípio e segundo a tradição, o pacto se faz com o diabo. Mas como nos afirma reiteradamente o narrador, ele não compareceu com sua figura e nada foi assinado. Isso suscita dúvidas não só quanto à existência dele mas também quanto à própria possibilidade da existência do pacto. Porém, algo aconteceu. Em vista disso é que Riobaldo coloca como o outro pactário três possibilidades: 1ª. O diabo, por quem ele chama nas Veredas-Mortas; 2ª. “Deus ou o demo” (p.318); 3ª. “Deus e o Demo!” (p.318). Porém, a segunda possibilidade, apresenta uma variante com um pequeno detalhe, depois de apresentada esta terceira. Diz: “Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo!” (p.319). Note o leitor que na primeira versão da segunda possibilidade a palavra “demo” está com minúscula e, no contexto, se liga à questão do pacto enquanto tradição, pois diz logo depois da alternância: “ – sofri um velho pensar” (p.318). Na segunda versão, a palavra “Demo” vem com maiúscula e, então, a questão não é algo que recebeu da tradição, mas é a questão em que Rosa se debate porque o possui, isto é, é dela que trata em Grande sertão: veredas. Aqui, ela se torna originária e inaugural. De nós, leitores, pede também o inaugurável.

O que o leva ao pacto
Riobaldo é um destinado e é do fundo deste destino que vai amadurecendo a hora e a vez do pacto. O destino é no como é. Como se deu? Já vimos acima que, sob o comando de Zé Bebelo, fugindo do cerco dos hermógenes, foram, perdidos nos caminhos do sertão, parar na Coruja. Era o lugar e hora do pacto. Lá ficam parados muito tempo, porque Zé Bebelo está desencaminhado e perdido, e não sabe o que fazer. Eles adoecem. E então o jagunço Sidurino diz que para não piorarem e enfraquecerem era preciso “... um vero tiroteio... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando...” (p.307). Primeiro, Riobaldo aprova, mas depois sente uma dúvida, como que picado por uma “cobra bibra”, isto é, uma víbora, cobra venenosa que designa também pessoa má, de má índole. Cai em si e percebe o paradoxo em que vive o homem, pois ali estavam os jagunços, amigos, se ajudando uns aos outros e, de repente, o poder fazer o mal, gratuitamente, a pessoas inocentes. Daí: “O horror que me deu – o senhor me entende? Eu tinha medo do homem humano” (p.307). Esta consciência do mal o faz pensar: “- parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo” (p.307); “... confiança eu mais não depositava, em ninguém” (p.308). Ele imagina que poderia ter outra sina e não ser atirador, sendo um habitante pacífico, sujeito à instância dessa jagunçagem ... cometer ruindades. E o paradoxo: como podiam agora ser seus amigos? É a questão desconcertante do mal, ligado ao humano do homem, uma questão que envolve a todos nós em nosso agir e decidir. Por isso, diz: “Não gosto de esquecer de coisa nenhuma” (p.308). E este é o primeiro motivo do querer o pacto. E não é pouco. Mas, como criador, não toma uma resolução ideológica de ser formatador de mentes e corações. Diz: “... pensei, eu sem querer disse alto: - “ ... Só o demo...” . Diadorim escuta e observa: “O inimigo é o Hermógenes” (p.308). E depois de algumas considerações sobre Hermógenes, conclui: “Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim” (p.310). É o novo julgamento, mas baseado na lei que se funda no vigor do pacto. O pacto inaugura a nova lei enquanto busca da justiça e o apelo desta leva ao pacto. Mas outro aspecto, de repente, em meio a esse processo, surge dentro de Riobaldo, que é a contra-face e o motivo mais profundo. A justiça só é justiça se fundada no amor. Riobaldo começa a falar de Otacília. Ela aparece então na narrativa como a “a esquecida formosura” (p.310). E há nessa passagem um sutil e astucioso pensamento em favor do pacto, da decisão pelo pacto, mas agora não tendo como motivação Diadorim e Hermógenes, mas o amor. Como veremos, no mais profundo do profundo de Riobaldo, o que o leva ao pacto é o amor. Mas que amor? Aqui, argumenta com motivos ético-sociais. Se continuasse “mero” jagunço, o pai de Otacília não consentiria no casamento dela com um jagunço sem honradez. Nesta linha de raciocínio, o fazer o pacto implica também um poder alcançar o amor de Otacília, isto é, “a esquecida formosura” (p.310).
Estes dois motivos não são separados: Para enfrentar a questão do mal se dispõe para o pacto, mas na medida em que este é impulsionado pelo Bem (justiça e ética) e pelo Belo (amor) enquanto obra de arte. O pacto é arte porque é obra de amor.

A clareira, a arte e a verdade
O que é a clareira? É o entre de ser e não-ser, é uma doação da floresta, é o livre aberto no qual entre-experienciamos cotidianamente nosso projeto de ser o não-ser. É nosso permanente entre-limiar de abertura para o ser e de afirmação de nossa identidade e diferença. É o entre-lugar de nosso ser conosco mesmo e com os outros, enquanto auto-diálogo e hétero-diálogo com o outro. Por isso, ela será o lugar do pacto. Em Grande sertão: veredas não aparece explicitamente a palavra clareira. Como veremos, Riobaldo a diz de outra maneira. Mas a abertura da clareira como o livre aberto de manifestação do humano subsiste e persiste no pensamento do poeta-pensador Rosa. Ela aparece, com as características que lhe são inerentes, no conto de Sagarana “São Marcos”. A importância da clareira está não só no fato de que é o lugar de manifestação do sagrado, mas também no fato de que tal epifania é o real se dando em sua verdade. Não há verdade sem clareira. A essência do ser-da-obra de arte, do ser-da-arte consiste em manifestar a verdade do sagrado, isto é, da realidade. O pacto que nela acontece é o pacto da verdade da realidade. Nela e por ela a realidade se torna mundo. A verdade é o mundo se manifestando enquanto arte. É que a verdade, realizando o humano do homem, o realiza como mundo. O homem não se reduz a uma “unidade” biológica. Até só podemos falar em “unidade” biológica porque ela já se dá dentro do humano do homem enquanto mundo. Por isso, Rosa pode afirmar, depois de ajudar uma mulher a dar à luz: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...” (p.353).

A chegada à clareira
Depois da fuga ao cerco dos hermógenes na fazenda dos Tucanos, perdidos e sem rumo, no sertão, chegam a um lugar de que não sabiam o nome. Quem lho diz é um homem que tira mel de um cortiço. O lugar se chama: Coruja. E é “... um retiro taperado” (p.303). Numa passagem significativa diz Riobaldo: ”O que é para ser são as palavras” (p. 39). Estes duas palavras: Coruja e retiro são plenas de sentidos. E por que é alguém que tira mel que enuncia e anuncia os lugares? Preste o leitor atenção.
Coruja todos sabem que é a ave que presentifica a filosofia. E o que esse nome recebe é muito. Não se pode considerar a filosofia a atividade lógico-racional a que foi reduzida absurdamente. No Fedro, diz Platão que o nome de sábio só se pode dar aos deuses, a nós homens só nos cabe o de amigos da sabedoria, ou seja, filo-sofia. Corujas é o lugar da filosofia porque nele acontece e acontecerá o pacto, a sabedoria, que advém quando o ser humano é apossado pelo taumadzein: o ser tomado pelo pathos, pelo entusiasmo, pelo logos de todo diá-logo. Nisso consiste o pacto de pensadores e poetas. Já retiro diz um lugar ermo, próprio para a meditação, para a preparação da manifestação do sagrado. Todas as grandes figuras religiosas, de poesia e de pensamento em algum momento se exilam para um retiro. É nesse momento que se dá o auto-diálogo enquanto uma auto-reflexão, um mergulho profundo no ser do que é e no nada do que não-é. Como mostrei no início deste ensaio, toda a obra nos fala desse auto-diálogo. Toda ela converge para o lugar e momento do pacto.
Chegam e mais uma vez o destino se vai manifestar. Diz Riobaldo: “E ali, redizendo o que foi o meu primeiro pressentimento, eu ponho: que era por minha sina o lugar demarcado...” (p.303). O lugar do pacto, como retiro, não pode ser nada exuberante, luxuoso, feérico. Muito pelo contrário, cabe-lhe a simplicidade, a austeridade e uma certa tristeza contida: “E aquele situado lugar não desmentia nenhuma tristeza. A vereda dele demorava uma agüinha chorada, demais” (p.303). Na arte não há símbolos: tudo é uma disputa de terra e mundo. Por isso, os buritis e os bois co-participam integralmente do que no pacto acontece. Diz: “Até os buritis, mesmo, estavam presos. O que é que buriti diz? É: - Eu sei E não sei...Que é que boi diz: - Me ensina o que eu sabia... (p.303). É do e no ordinário, numa integração de tudo, que irrompe o extra-ordinário, integrando o vegetal, o animal e o homem, ou seja, a terra/physis enquanto zoogônico. Aristóteles nos relata o acontecer do pacto de Heráclito. Pensador famoso, tornou-se objeto de curiosidade. E uns turistas resolvem visitá-lo em seu retiro. Envolvidos pela expectativa deslumbrante de ver um pensador pensando o extra-oridinário, ao serem recebidos no lugar discreto e franciscanamente despojado, admirados, se retraem, pois Heráclito, como qualquer mortal, estando com frio, se aquecia na lareira. Do fundo de sua sabedoria os compreende. E lhes acena com o apelo do extraordinário no ordinário: - Entrem! Aqui também mora o extraordinário.
À distância de meia-légua havia uma outra vereda. “Essas veredas eram duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um tristonho brejão...” (p.303). Juntas formavam as Veredas-Mortas. E se abre a clareira: “No meio do cerrado, ah, no meio do cerrado, para a gente dividir de lá ir, por uma ou por outra, se vida uma encruzilhada. Agouro? Eu creio no temor de certos pontos” (p.304). Já presentes no rito da iniciação, para Rosa, a clareira reúne os três elementos essenciais nos quais se dá e acontece o humano do homem: água, terra e ar. O fogo é o que falta e que a estes reunirá, como veremos, dando-se, então, o pacto. Mas será o fogo da presentificação do extra-ordinário no ordinário e não algo feérico e deslumbrante. Até será deslumbrante, mas como o entre do auto-diálogo. Eis a sutileza com que ele nos diz da presença aí do fogo: “Eu creio no temor de certos pontos. Tem, onde o senhor encosta a palma-da-mão em terra, e sua mão treme pra trás ou é a terra que treme se abaixando. A gente joga um punhado dela nas costas – e ela esquenta... ele cheira a outroras... Uma encruzilhada... Aí mire e veja: as Veredas Mortas... Ali eu tive limite certo” (p.304). Antes de vermos a questão que a encruzilhada nos traz, algo importante no texto transcrito. A escrita permite a Rosa encorpar as palavras de sentidos que de outra maneira seria mais difícil de manifestar. O leitor que preste atenção nas transcrições acima verá que aparecem duas vezes o nome do lugar: Veredas-Mortas e Veredas Mortas. O primeiro denomina o lugar geográfico, já o segundo traz muitos possíveis sentidos, pois é o próprio do poético. O amigo leitor pense, dialogue.

A clareira e a encruzilhada
O caminho auto-poético da travessia de vida e morte não é um caminho que de fora se abre e como perspectiva podemos expor, falando sobre. Riobaldo nos diz: O cerrado se abre numa clareira e no meio, no entre, com todo o seu mistério, pois por sermos Entre-ser sabemos e não sabemos o que somos, procuramos, entre-sendo, aprofundarmo-nos no entre, no meio. É a en-cruzilhada. É o estarmos no en-in-entre da cruz. Dele difluem e para ele confluem os caminhos, as veredas da vida E da morte. É o caminho auto-poético a travessia. Ele não é um caminho que de fora se abre e como perspectiva podemos expor, falando sobre:“O sertão não tem janelas nem portas” (p.374). Por isso diz Riobaldo: “Uma encruzilhada... Aí mire e veja”. Aí, no entre, em, dentro, não se pode mirar apenas como quem contempla de fora, é necessário mais, é preciso ver. Ver o que se ofertando no aberto e iluminado da clareira ao mesmo tempo se retrai. Sobre ele não se pode falar, só dia-logar, falar com, enquanto co-responder, ou seja, jogarmo-nos e abrirmo-nos para o diá/entre do logos. Dialogar é escutar e nos abrirmos para a en-cruzilhada. Fora da encruzilhada não há arte, porque não há as veredas do diálogo.

Pacto: diálogo e obra de arte
Encruzilhada, como lugar do pacto, não é um mero cruzamento transversal de dois caminhos, de duas veredas. As duas veredas indicam aí os caminhos do dia e da noite e constituem uma con-cruz onde vai acontecer o en/entre, o pacto. A con-cruz da encruzilhada se deve ver a partir do en- no qual se reúnem as dimensões horizontais e verticais. A encruzilhada dos caminhos do dia e da noite nos remete à disputa da divergência convergente e da convergência divergente dessas duas manifestações cosmogônicas do sagrado. O pacto significa exatamente isso. É uma palavra formada do particípio do verbo pangere. Nele convergem quatro sentidos complementares e fundamentais. 1º. Pelo primeiro algo se fixa, enterra, planta, ou seja, algo se estabelece sólida e profundamente; 2º. Este sentido passou não só da relação do homem com a terra como um pacto de vida, mas aos homens entre si como pacto de vida, paz e con-córdia. Porém, no caso presente, diz muito mais um pacto consigo mesmo como auto-diálogo do que é e não é. É o pacto do auto-diálogo, porque se trata de um pacto onde se pactua a doação do ser e do não ser pelo sagrado. Por isso, o que se negocia é a alma, ou seja, o que nos é próprio. Então o pacto é o pacto pelo que é próprio, pelo apropriar-se. E segundo Heráclito no fragmento 123, isso é amar. Num tal pacto, vender é o mesmo que comprar de quem pode vender a possibilidade de apropriar-se. Daí a resposta de compadre meu Quelemém à pergunta: “ - O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” : “ – Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais ...” (p.460). 3º. O misterioso no real é que o mistério para ele mesmo se apropriar tem que se fazer mito, eclodir no aberto da palavra. Então não há pacto se não houver o dito inaugural do sagrado: é o narrar. Daí o produzir, o compor a obra de arte, seja escrevendo, seja falando. Pelo auto-diálogo, ao se narrar narrando, surge a obra de arte como diálogo. E que só pode ser obra de arte se nela vigorar o logos do diá-, a palavra inaugural, a voz do silêncio que nos provoca e convoca à escuta. Sabemos pelo final de Grande sertão: veredas que a narração não foi narrada só uma vez, mas duas, pois Riobaldo diz: “Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência – calma de que minha dor passasse...” (p. 460). Portanto, antes de narrar ao ouvinte da cidade que o visita na fazenda, ele já narrara a mesma narração a compadre meu Quelemém. Qual a diferença? Quem sabe? Poderíamos falar em dois diálogos com o outro? Creio que não. Compadre meu Quelemém é Riobaldo mesmo dialogando consigo. A palavra com-padre diz o ser responsável e pai ao mesmo tempo. Ele é o pai que surge com o rito da iniciação e acompanha sua travessia, torna-se o espelho e a fala da paciência, isto é, daquele que o escutando no vigorar do silêncio o deixa escutar-se a partir da fala do silêncio. Quelemém, como padrinho, é o co-responsável pela co-respondência ao apelo do logos, no diá-logo do auto-diálogo, ou seja, pelo narrar enquanto travessia, porque ser poeta é ser pactário, para fazer da vida uma obra de arte. Eles não são dois, daí a presença sempre do possessivo: meu. Porém, quando na fazenda recebe o ouvinte e faz uma nova narração em três dias, aí certamente temos um diálogo com o outro. O outro que é o visitante, na realidade, somos nós leitores. Se o compadre responde e faz reflexões, ao longo da obra, em nenhum momento o ouvinte-leitor fala. É, pois, um diálogo com o outro que, no fundo, é uma provocação e convocação para o auto-diálogo. É o que o tempo todo estou tentando, não falando sobre, mas falando com. Com quem? Comigo mesmo. Realmente, só podemos falar a partir da escuta do que somos e não somos. Mas para isso é necessário, na travessia, fazer as três vias de Parmênides, senão nos tornamos, como mortais, “... os bicéfalos (dikranoi), justamente porque eles não se apercebem da necessidade conjunta dos três cursos e percursos do mesmo decurso do caminho que se viaja de si para si mesmo rumo ao que é (éon), ao que não é (mè éon) e ao que aparece como sendo muito mais do que parece (éonta-dokounta) (Souza, 2001: 27). A travessia é de nós para nós mesmos. É o que denomino auto-diálogo. 4º. Dos três sentidos surge da raiz do diálogo um quarto: o con-certar. No início da narração, Riobaldo faz uma diferença entre ele e os demais chefes que o precederam, em relação ao mundo, assinalando-a com a oposição entre dois verbos: consertar e concertar. Já comentamos. Mas aqui, na hora do pacto, é o momento adequado para ver como o concertar decorre do pacto, isto é, do próprio narrar e construir a obra de arte. Por detrás do verbo concertar há inicialmente uma dis-puta no sentido de um diálogo. E segundo o Aulete (Aulete, 1964: 884): um pactuar, no sentido de ajustar, levando à harmonia, ao soar harmonicamente, por exemplo vivo, num concerto musical. O pacto, no fundo, é um conduzir à harmonia dos contrários, seja interiormente, seja exteriormente. Preservar as diferenças nas identidades eis o concertar o mundo, eis o fazer arte. “A existência é uma operação poética, uma obra de arte, um projeto instituidor de sentido ... Ser poeta verdadeiramente equivale a transformar-se no artista de sua própria vida ... Existir quer dizer exsurgir do não-ser para o ser” (Souza, 2001: 24).

A hora do pacto
Relembrando o rito de iniciação, dá-se a disputa de medo e coragem. Mas algo, como fruto da decisão fundada na cor-agem, deve acompanhar algo fundamental, porque no fundo o pacto é o pacto de amor enquanto pacto do apropriar-se do próprio, o que é amar. Deve haver alegria. “Somente com alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações” (p.316). Decide-se pelo pacto. Vai para as Veredas-Mortas. “Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos” (p. 317). Na concruz a encruzilhada, o lugar do encontro das duas divindades nele. Por isso, quando indaga de onde poderia vir o dia-bo, o pactante, diz: “E de um lugar – tão longe e perto de mim, das reformas do Inferno” (p.317). No pacto não há somente um vir, muito mais, há um reformar. Mas este causa medo. Porém, buscando coragem diz: “... eu não me tinha licença de não me ser...” (p.318). E depurando-se nesse momento decisivo de tudo que fosse circunstancial, por um processo de esquecimento, só o que, no fundo e unicamente o move, se torna firme e presente: “E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!” (p. 318). Temos aqui no momento crucial o início e o fim da obra, como já mostramos no começo do ensaio. E como travessia o “ficar sendo!”. Rosa reitera e mostra que o pacto é, no fundo, o auto-diálogo no e pelo qual se é e não é no sendo. Contudo, este é e não é exige o pacto justamente para o não-ser eclodir no ser, ou seja, para a divindade telúrica da noite do caos e a divindade urânica do dia acontecer como pacto, no qual há a identidade das diferenças e a diferença das identidades. Há uma convergência divergente sem dicotomias de espécie alguma. No pacto da en-cruzilhada há a con-cruz dos três caminhos assinalados por Parmênides. Tais caminhos se dão na travessia, pois: “Aonde se vai sempre se volta ao donde se parte (frag. 5) (Souza, 2001: 26). “Quem se inicia no conhecimento hierofanicamente revelado tem de assumir a vigília ontológica que o capacite a considerar, não apenas um, mas, sim, os três caminhos (hódoi) da iniciação gnosio[onto]lógica: 1º. A senda do ser; 2º. A vereda do nada; 3º. A via da aparência” (Souza, 2001: 26).
Na concruz da encruzilhada, à meia-noite, quando a noite declina e o dia recomeça, espera. Revestido da “ mais-força, de maior-coragem ... do profundo mesmo da gente”, espera. E nada, visto pelo lado externo, sucedia. Mas, tomado pelo entre da encruzilhada, deixa-se tomar pelo vigor do pacto: “Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu” (p. 319). Então invoca e provoca a vinda da divindade urânica do dia, pois não chama o diabo, mas: “Lúcifer! Lúcifer!...” (p.319). Quem é Lúcifer?

A tripla chamada
O pacto se dá em três momentos progressivos, pois há uma tripla chamada. Na primeira ele convoca apenas Lúcifer. Embora Riobaldo diga: “Não. Nada” (p. 319). Assim mesmo destacados, em termos absolutos, acrescenta logo algo: “O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos ...” (p.319). A Noite, divindade do caos primordial, do Nada, fala, tem o vozeio de um ser-só. Há nela uma unidade e que “principia feito grilos ... E termina num queixume ... de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono” (p. 319). Como quando dormimos, dentro de nós, há a unidade da voz da noite adormecida, mas real, numa vida pulsante e diferente. A Noite como divindade e linguagem fala, embora subjaza no véu do sono. Então ele torna a convocar: “- Lúcifer! Satanaz! ...” (p.319). O que agora mudou é que são chamadas as duas divindades: Lúcifer e Satanaz. E desse duplo chamado resulta o quê? “Só outro silêncio” (p. 319). Não é só mais o silêncio da noite no véu do sono. Agora é outro silêncio que nos entre-possui, como o próprio Riobaldo diz: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais” (p.319). O pacto está se realizando, porque ele está sendo tomado pela questão, pelo silêncio que é mais do que qualquer fala e, mais, é a possibilidade não só de qualquer fala, mas também de qualquer escuta. No entre-ser de ente e ser, transbordamos para o ser, isto é, nos movemos no ser de tudo que é, no não-ser. Se Lúcifer é, como o nome diz, o portador da luz, Satanaz assinala na mitologia do Novo Testamento, o seu oposto. Mas no pacto trata-se mesmo da disputa de opostos, senão não há pacto, mas dicotomia e anulação. A disputa de opostos é o diálogo. Mas agora é o diálogo como auto-diálogo onde quem fala é o silêncio ou segundo o fragmento 50 de Heráclito: o logos. E não mais um eu ou um tu, não mais o que sou e o que não sou. [Frag. 50: Auscultando não a mim, mas ao logos, é sábio co-responder: tudo um]. E vem a terceira invocação e convocação: “ – Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!” (p.319). O que muda em relação à segunda? Se na primeira invocação temos o que é, na segunda, o que não é, mas parece ser, na terceira, tanto a primeira como a segunda se dão como provindo do que há de mais profundo em cada um. No sentido comum Infernos indica lugar sub-terrâneo em que habitam as almas dos mortos. Não é exatamente nesse sentido que Rosa o está empregando aqui. Ele indica mais. Primeiro, notemos que Infernos não se refere apenas a Satanaz, a vírgula que os separa indica que tanto Lúcifer como Satanaz são dos seus Infernos; segundo, não indica aí lugar dos mortos, porque ele está vivo e, mais, precede a palavra o pronome possessivo “meus”. Não indica aí um lugar no qual ele esteja localizado; terceiro, se escutarmos a palavra no que ela diz, ouviremos o quê? In-ferno se forma do pré-verbal in, em, entre, interior, e do verbo fero, de onde se forma –fernus como local do entre, do interior, do que há de mais profundo em nós, do que está para além de Lúcifer E de Satanaz, embora um E outro lhe co-pertençam. É o interior do interior para o qual não há palavra. Por isso, o pacto se dá na en-cruzilhada, no entre, no interior da convergência e divergência das duas veredas, a de Lúcifer E a de Satanaz. Nela comparecem: céu e terra, imortais e mortais. Sertão. Como entre-ser somos no ser-do-entre, esse E/EM/DIÁ abismal, que Heidegger na conferência “Zeit UND Sein” (Tempo E ser) chama de “neutrale tantum” (simplesmente neutro) (Heidegger, 2000: 47). Notemos ainda que o nome Lúcifer também se compõe com o verbo fero, ou seja, aquela divindade portadora da luz. O pacto nos conduz, como auto-diálogo, ao que há de mais profundo em nós, ao entre, ao simplesmente neutro, o que simplesmente não é um nem é outro: não é Lúcifer nem é Satanaz, não é o céu nem a terra, embora nos constituam, porque provimos e somos de um E de outro. Deste simplesmente neutro é impossível falar, pois nos diz Parmênides: “O outro, que não é, e que necessariamente não-ser é; este caminho eu te digo em verdade ser totalmente insondável como algo inviável; pois não haverias de conhecer o não-ente (pois este não pode ser realizado) nem haverias de trazê-lo à fala” (Parmênides, 1991: 45).

O pacto: a fonte do rio
O rito do pacto terminou. E como o mito aconteceu? Acontecendo. “Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai – desde o início se faz presente o rio, mas agora não é ele que entra no rio, mas o rio que entra nele. “A fonte não é o passado, mas o futuro do rio que se viaja de si para si mesmo, cavalgando a sua própria foz” (Souza, 2001: 31) – Vi as asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo – Asas aqui trazem o ar onde elas se movem livremente no aberto da clareira. Porém, tais asas lembram o cavalo alado Pégaso, o cavalo alado da poesia. Por isso, depois que voltar para o acampamento, quando Seu Habão retorna, o cavalo estranha Riobaldo e, diante disto, ele oferece o belo e imponente cavalo a Riobaldo. E este lhe dá o nome do poeta Siruiz, que um dia viu quando ele, ainda jovem, se encontrou pela primeira vez com o bando de Joca Ramiro. Este tema foi desenvolvido em minha dissertação de mestrado (Castro, 1976) – Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca – Foi o que procurei trazer à reflexão e diálogo com a citação acima de Parmênides – Cabem é no brilho da noite – Nesta única oração ele sintetiza a complexidade do pacto, pois aí comparecem as divindades das duas veredas. Por isso, segue – Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!” (p.319). Todo este ensaio, que se propõe como diálogo, partiu do sagrado. E eis que ele aparece na conclusão da manifestação do pacto, o que fundamenta nosso diálogo com Grande sertão: veredas do qual o que digo não quer ser mais do que uma escuta, solicitada pela própria obra. Mas muitos devem ser os diálogos como auto-diálogos enquanto pactos: “Absolutas estrelas”. Por que absolutas? Por que estrelas? Por que absolutas estrelas? Penso que devemos entender a introdução da palavra absolutas ligada diretamente às palavras anteriores: Aragem sagrada. A presença, como aragem, do sagrado é que possibilita o enunciar poeticamente as estrelas como absolutas. Como não ligar aqui aragem à força manifestadora do Espírito (Nous), o sagrado? Quanto a “Absolutas estrelas” devemos observar: Em princípio, absoluto é o que é independente de todo ser e acidente, ou seja, sai do âmbito do ente, pois o sagrado é o absolutamente indizível, impensável. A questão é maior que o homem. Poderíamos dizer que é o não-ser de Parmênides. Aliás, é melhor não dizer nem por comparação, porque não pode haver comparação. Talvez o melhor caminho, sem dúvida, dentro dos três caminhos de Parmênides, a que já nos referimos, e dentro da en-cruzilhada da con-cruz, seja nos concentrarmos na palavra estrelas. Na e a partir da clareira da noite olhamos e vemos as estrelas. Ao longe, muito longe, elas brilham como pontos de luz argêntea na profundeza inatingível do uni-verso. No entanto, cada uma tem luz própria e brilha a partir de si, de dentro de si, do mais profundo de si, em plenitude de realização. Notemos que a luz é a manifestação do que ela é, porque o que ela é é mais do que a luz. A luz só pode brilhar no livre aberto do dia e da noite. Plenitude e integração, sem perda das diferenças, porque vigorando no sagrado podem ser absolutas estrelas. É o pacto. É Riobaldo. É a fonte do rio. É a arte. É o sagrado. Somos nós, quando tivermos a cor-agem de nos tornarmos pactários.
À narração da eclosão do sagrado, seguem-se três parágrafos importantíssimos, onde cada palavra tem sua origem no originário da memória do sagrado enquanto narração inaugural. Por isso, como encerramento, no terceiro parágrafo diz: “Ao que digo, não digo?” (p.320). É um momento solene de encerrar a narração do pacto. Se o leitor tiver a curiosidade de reler a passagem onde ele diz ao ouvinte/leitor o porquê do que lhe vai narrar, encontrará, o mesmo dizer: “Dou o dito” (p.11). Já comentamos essa passagem. O importante a assinalar é que a recorrência acontece no momento decisivo: o pacto como acontecer poético-apropriante.

Lúcifer e Apolo: a arte e o mel
Naturalmente, deveria encerrar aqui meu diálogo com o pacto enquanto o seu acontecer. Porém, há um pequeno detalhe que ilumina todo o rito do pacto. Transtornado em todo o seu ser, não vai logo embora. A noite se torna para ele como “... um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir...” (p.320). E depois ele se concentra no que acontece com seu corpo, um profundo frio por dentro e por fora enquanto solidão que jamais na vida assim sentira. E aí se volta para a Terra, se une à Terra: “Abracei com uma árvore, um pé de breu-branco” (p.320). O leitor já deve ter percebido aí o paradoxo: se é breu como pode ser branco? Se é branco como pode ser breu? A Terra é esse mistério paradoxal. E mais. À eclosão do branco em meio ao breu da Terra, algo vem ainda mais admirável. Levanta-se e sente fome. E então a memória do originário: “Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina d’água, pelo chão, no meio das folhas secas e verdes” (p.320). Mel, água, seco, verde. Num pequeno período ele retoma o rito de iniciação. Mas agora tudo se concentra no mel. Abelhas e mel, o que isto têm a ver com o pacto? Já no momento de chegada ao Coruja, quem lhe diz o nome é: “Um homem, que com a machadinha na mão e sua cabaça a tiracol tratava de desmelar cortiço num pau do mato...” (p.303). Na chegada ao Coruja, lugar do pacto, e na sua conclusão, as abelhas e o mel. O início no fim e o fim no início. O que abelhas e mel têm a ver com o pacto? Há dois aspectos complementares a considerar. O deus protetor das abelhas e das colméias é Aristeu, que é uma personificação de Apolo. Apolo é o deus Sol, estrela absoluta. Mas mais do que simplesmente deus sol, ele encarna o Dia, ou seja, a divindade urânica-celeste que comparece no pacto como uma das veredas. Por isso mesmo, Apolo/Aristeu estão ligados com o dom da profecia, com as musas e, então, com as artes. E as abelhas? Na tradição mítica, também as abelhas, como não podia deixar de ser, estão ligadas à profecia, o que é o próprio da obra de arte, pois a arte realiza o realizável, enquanto verdade manifestativa. E pela doçura do mel que produzem estão vinculadas às Musas: a doçura e harmonia que as artes produzem. Mas esta doçura do mel das abelhas tem outra dimensão que acompanha o pacto: o amor.

O contexto mítico grego em que estão inseridas as abelhas indica, portanto, duas direções de pesquisa: o campo das relações sexuais e sua condição social (casamento legal, concubinato, relações extra-conjugais, abstiência etc.) e o campo da morte e seu mistério, comemorado no festival da Tesmofória” (Araújo, 1992: 34).

Talvez o leitor não se dê conta o suficiente de que Apolo, Aristeu e Abelhas perfazem não só uma dimensão radical do pacto, como uma das veredas da concruz da encruzilhada, mas que esse fundo acompanha todo a obra e que, lida nesse horizonte complexo, muitos dos seus aspectos e dimensões podem ser pensados e repensados em correlações e correspondências inaugurais. Em vez de tentarmos encaixar a riqueza originária da obra nesses conceitos metafísicos dicotômicos, somos interpelados para uma abertura de escuta e diálogo com, mas a partir do pacto enquanto uma descida abismal aos nossos Infernos. Ou como nos diz Riobaldo: “Pois ainda tardei, esbarrado lá, no burro do lugar. Mas como que já estivesse rendido do avesso, de meus íntimos esvaziado” (p.319). No e com o pacto ele já faz a travessia do Liso do Suassuarão. Por isso, tudo o que depois vem nada mais são do que conseqüências de explicitação do que no e com o pacto acontece. Convido o leitor a acompanhar com pensamento dialogal essas explicitações, relendo o que acontece quando depois do pacto, Riobaldo se torna Chefe.

A sabedoria e o amor
Mas, para terminar, ainda gostaria de destacar duas explicitações que nos falam da essência do pacto, ligados a Apolo, Aristeu e às Abelhas. No caminho encontram um velho em meio ao sertão, pobre e vivendo com os mínimos recursos. Com a velhice algo pode vir que nenhuma riqueza compra e está presente ao longo da obra: a sabedoria. Em diversos momentos diz o narrador: Aprendi com os antigos. “Esse era o velho da paciência. Paciência de velho tem muito valor. Comigo conversou” (p. 393). O velho o aconselha a ir a um lugar um pouco distante, onde estava enterrado um tesouro. Riobaldo pensa e acaba por se perguntar: Por que ele, velho, sendo tão pobre, não foi lá desenterrá-lo? Mais: “Por que é que se dá conselho aos outros?” (p.393). Ao longo da obra vem sempre este embate com os outros que, de fora, querem orientar e dar caminho que só pode ser buscado dentro de nós. “Ele entendia de meus dissabores? Eu mesmo era de empréstimo. Demos o demo... E possuía era meu caminho, nos peitos de meu cavalo. Siruiz. Aleluia. Só” (p.394). O diálogo continua. Riobaldo resolve perguntar: “Mano velho, tu é nado aqui, ou de donde? Acha mesmo assim que o sertão é bom?...” ... e respondeu bem: - “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: - ... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo” ... Respondeu, apontando com o dedo para o meu peito... [coração] Dele o dito, eu não decifrava” (p. 394). Não há como decifrá-lo, só fazendo a travessia. Cada um a sua.

O Verde-Alecrim: a ilha dos amores
Só depois é que ele vai entender de que tesouro o velho falava. “Porque: o tesouro do velho era minha razão” (p.394). Que razão? O que o move e o afeta: o amor. Se ele tivesse seguido o conselho do velho e fosse procurar o tesouro, no caminho ficava o lugar “onde assistia Nhorinhá, lugar ditoso” (p. 394). Então sua vida mudava, pois iria “casar feliz com Nhorinhá, como o belo do azul; vir aquém-de” (p.394). Por que aquém-de? Porque não cumpriria seu destino, o de experienciar a arte como amor e o amor como arte, onde se dá o pacto de: Diadorim, Nhorinhá e Otacília. Pois o amor é a convergência divergente e a divergência convergente dos contrários, das duas divindades, no percurso das três vias: Diadorim, Nhorinhá e Otacília.
Se, atento à escuta de seu destino, não segue os conselhos de outro, no pacto da travessia do amor algo o espera: Uma parada na “ilha dos amores”, o Verde-Alecrim. Claro que a chegada ao povoado, de sete casas e uma casa grande, pertencente a duas mulheres-damas, lembra o famoso episódio de Os Lusíadas em alguns detalhes. A semelhança com a ilha é evidente: “ ... ficava em aprazível fundo, no centro de uma serra enrodilhada ... Cheguei e logo achei que lugar tal devia era de ter nome de Paraíso” (p. 397). E quer que seus homens, todos, recebam o “justo quinhão” (p. 397). “A pois, me ia, e elas ficavam as flores naquele povoadozinho, como se para mim, ficassem na beira dum mar” (p. 400). Penso que, porém, para além de Rosa querer aproximar o povoado com uma ilha, a idéia de mar está muito mais ligada aos elementos primordiais, sempre presentes: terra e água. E claro, o ar com a luz. Mas ele fala de uma dupla luz, manifestada nas duas damas, donas da casa. Uma é Ageala (Hortência), “ ... porque o corpo dela era tão branquinho formoso, como frio para de madrugada [lua] se abraçar...” (p. 398). E a outra era Maria-da-luz, morena, cabelos pretos. “E os olhos água-mel, com verdolências ...” (p. 398). Fica evidente aqui a proximidade dela com a Água e o Aristeu/Sol (olhos água-mel), e a Terra (o verde). Como não podia deixar de ser, Rosa vai comparar as duas com Nhorinhá e, para surpresa, diz: “... não davam nem para lavar os pés dela” (p. 397). Então nos perguntamos, o que há de essencial nesse evento-questão? Ele tematiza aqui o amor do ponto de vista do dar. Quando Riobaldo entra para fazer amor com as duas, o jagunço Felisberto fica de sentinela. A certo momento ele tosse e ouvindo-o as duas pedem que ele o deixe entrar e tomar café também com eles. Consente e depois de ter entrado e comido e bebido, Maria-da-luz pede mais: Que Riobaldo o deixe fazer amor com ela. Ele reage, pois, se tal acontecesse, seria ele, o Chefe que teria de ficar de sentinela. Diz não. E surge nas palavras de Maria-da-luz a questão do amor como dar. “ – Tu achou a gente casual aqui, no afrutado. Tu veio e vai, fortunosamente. Tu não repartindo tu tem?” (p.399). Se bem observarmos, o doar e repartir estão ligados à mulher Maria-da-luz. Nela se fazem presentes os elementos primordiais da physis, e é de seu próprio doar vida, alegria, prazer, pois nela se concentra a nascividade poético-amorosa, junto com o Sol. Então o doar da mulher não é um doar dela. Ela doa o que lhe foi doado pelo sagrado, assim como o narrador nos dá o dito, a arte, que também lhe foi dada pelo sagrado. Que é o ato amoroso senão um pacto?, um mútuo ser possuído pela paixão.
Há ainda uma outra questão ligada ao Felisberto. Ele tem uma bala de cobre na cabeça, que não pode ser tirada. E não se sabe o porquê, às vezes ele fica todo esverdeado, ou seja, a questão da morte para ele está muito presente e viva. Próximo da morte, mas feliz no nome, Riobaldo acha uma solução que atende aos dois lados: Felizberto deixa o bando e fica morando com elas. O amor como doar é uma das dimensões para o homem ser feliz. Esta tensão entre o amor E a morte, concentrado no evento-questão de Felisberto, marca uma diferença fundamental do episódio da Ilha dos Amores. Pois a recompensa lá, o quinhão de cada um, acontece já na volta para casa, depois da missão cumprida com sucesso. Aqui vai ser o inverso. A estadia no Verde-Alecrim precede a batalha final, onde morrerão Hermógenes e Diadorim, encerrando a Odisséia de Riobaldo. Uma odisséia do amor pelas veredas do Grande Ser Tao. Diálogos Amorosos.

BIBLIOGRAFIA

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