08 dezembro 2007

As questões da questão da arte



Prof. Manuel Antônio de Castro


gota de orvalho
ao sol da manhã
precioso diamante

(Bashõ)


As questões

No § 206 Heidegger diz a propósito de seu ensaio A origem da obra de arte:

No interior da referência humana à arte, dá-se a outra ambigüidade do pôr-em-obra da verdade, que à p.59 [§161] é denominada como criar e desvelar. De acordo com o que é dito nas páginas 58 e seguintes [§158 e seguintes] e 47 [§124], a obra-de-arte e o artista baseiam-se simultaneamente no que se essencializa na arte. Na frase: “Pôr-em-obra da verdade”, em que fica indeterminado, porém, determinável, quem ou o que em qual modo “põe”, vela-se a referência do ser e da essência humana, e tal referência, nesta formulação, já é pensada inadequadamente, - uma dificuldade aflitiva que está clara para mim desde Ser e tempo e, depois, é dita em muitas formulações (veja por último Zur Seinsfrage [Para a questão do ser] ) e no presente ensaio à p. 49 [§131]: “Seja apenas observado isto que ...”.

Se lermos com atenção o que o autor aí diz, quando afirma: “...vela-se a referência do ser e da essência humana, e tal referência, nesta formulação, já é pensada inadequadamente, - uma dificuldade aflitiva que está clara para mim desde Ser e tempo e, depois é dita em muitas outras formulações...”, vamos ser remetidos para um horizonte de reflexão, quando se busca o originário da obra de arte, para Ser e tempo, mas na medida em que neste acontece uma procura da “referência de ser e essência humana”. Mas esta “referência” não é algo assim tão fácil e determinável, pois ela “...vela-se...”. Para onde nos remete este velar-se? Para onde Heidegger nos está remetendo quando na tematização do originário da obra de arte nos lança retrospectivamente na grande questão a partir de onde se tece e entretece Ser e tempo? Ora, o autor não cansou de dizer e repetir exaustivamente que a grande questão em questão é o esquecimento do sentido e da verdade do ser, o esquecimento do ser, porque desde a filosofia grega como filosofia não se falou propriamente a não ser do ente. Mas são tantos os discursos sobre o ser no percurso do Ocidente! O que aí o pensador nos propõe para ser pensado? E que diferença faz isso para a arte? Certo é que uma coisa é pensar a arte no horizonte do ente e outra, bem outra, é pensar a arte no horizonte do sentido e da verdade do ser.
Por isso, não adianta tentar adentrar a questão da arte, do originário da obra de arte, se antes não se enfrenta, de frente e inequivocadamente, a questão do esquecimento do ser. O que é isto – o esquecimento do ser, o esquecimento do sentido e da verdade do ser?
Pensar isto – é abrir-se incondicionalmente para um diá-logo não só com a tradição ocidental, mas radicalmente com o imemorial da memória. Esta abertura exige a vigência e a abertura a partir de três verbos: questionar, diferenciar, dialogar. Questionar diz inauguralmente o pôr em questão no e pelo perguntar. Mas este é um conduzir-se nas entre-vias do saber e do não-saber, por isso o questionar é regido pelas vias do “entre”, do “di-“ do di-ferenciar. Se somos, de fato, conduzidos pelas vias do “di-ferenciar“, já nos movemos na clareira do aberto, isto é, no dia-logar, onde as entre-vias se tornam “vias” do “logos”, o “mundo” do aberto da clareira. O que é isto - o “dialogar” como “entre-vias” do “logos”? Dialogar é deixar o “logos” se densificar no e pelo poietizar (dichten/poiein/Dichtung/poiesis). As “entre-vias” são as questões, como diferenças essenciais.
Muitas são as questões em nossa vida, quem o poderá negar? Porém, o Ocidente se constitui como Ocidente quando se instaura a questão inaugural? O que é isto – o que permanece no fluxo das mudança?. Esta é a questão inaugural. Mas a quem se dirigia esta questão? Evidente: à Physis. O que na pergunta se pergunta? Não qualquer coisa. Quando o “isto” é a questão, então a pergunta pergunta pelo “originário”, pela “arché”.
“Isto” que parece tão simples continua hoje a nos questionar. Mas na longa e mutante via do Ocidente, ela se densificou e hoje podemos desdobrá-la em duas, inscrita numa terceira que é a primeira e que toma três faces:
Eis as duas questões permanentes e mutáveis:
1ª. O que é isto – o ser humano?
2ª. O que é isto – a filosofia? O “isto” da filosofia não é simplesmente qualquer filosofia do isto e aquilo. Tal questão questiona no e como princípio: O que é isto – a physis?
Estas duas perguntas estão em tensão, a tensão de physis E homem. É a referência a que Heidegger se reporta no § 206, a referência originária de “ser e essência do humano”.
3ª. Para não cair numa resposta/conceito de essência essencialista, porque a physis é sempre um acontecer poético-apropriante, esta questão, embora terceira é a primeira. E se desdobra em três faces:
3.1 – O que é isto – o mito? Esta pergunta traz incrustrada a pergunta pelo sagrado;
3.2 – O que é isto – a arte? Se esta pergunta, por um lado, se liga ao mito e, portanto, ao sagrado, por outra, não se pode separar da filosofia/pensamento, surgindo a terceira, certamente ligada também ao sagrado, mas como que aparentemente vindo em terceiro lugar;
3.3 – O que é isto – o pensamento? Mas não é esta a pergunta pelo isto da filosofia? Sim. E aqui um esclarecimento. Moderna e metafisicamente, o ponto de partida deve ser epistemologicamente o homem que pergunta, pois, em si, a physis, parece não pergunta. Que não pergunta é fato, mas que ela já Se dá como questão é um fato mais incontestável que precede toda e qualquer pergunta, caso contrário nem se poderia perguntar. Então, na realidade, devemos agora dizer que a primeira pergunta não é: O que é isto – o ser humano?, mas: O que é isto – a physis? Para sermos ainda mais lógicos na evidência das questões, devemos dizer ainda mais verdadeiramente, que a physis Se dá como questão nas três faces da terceira. Estas três questões como desdobramento da segunda são, na realidade, o elemento onde viceja a primeira. Enfim, as três questões/perguntas inaugurais e originárias se interligam e explicitam circularmente e vão ter sempre como elemento a questão inaugural da arché e do telos (Princípio/Ursprung).

O humano
A apropriação do homem como humano gera um “entre” desdobrado em três caminhos do mesmo, mas não sendo a mesma coisa: 1º. Mito; 2º. Arte; 3º. Pensamento/filosofia. Porém, o núcleo das duas questões inaugurais a partir da primeira se dá na tensão de ser e ente, localizado no “isto” como essência essencial – a questão ontológica, e como essência essencialista – o conceito epistemológico. Pergunta pela arte é pergunta sempre e sempre pelo humano. Então a tarefa consiste em inaugurar no pensamento do ente o esquecimento do ser, na verdade do ente como presença, a não-verdade como ausência velada, na fala da linguagem falada, o silêncio da não-linguagem, no saber do ente, o não-saber do ser, na historiografia dos fatos, a história da vigência da memória como acontecer poético, no é de todo ente, o não-é do Nada de todo ser.

Postura
Mudar nossos hábitos e certezas conceituais e nos abrirmos para as questões não assim tão fácil. Como deixar vicejar no solo firme de nossos pés conceituais, o sem fundo do permanente da mudança? É assim tão fácil deixar acontecer

gota de orvalho
ao sol da manhã
precioso diamante
Não. Não é. Dar esse “salto mortal” - perigoso – exige coragem.
Por isso podemos falar de duas posturas básicas:

1ª. A que se restringe unicamente ao ente e diz respeito a todos os conhecimentos da ciência. Temos de partir da ciência porque é ela o horizonte dominante hoje, a partir da qual se determina o que é a filosofia, o que é a teologia, o que é o homem, o que é a arte, o que é o mito, o que é Deus, o que é tudo que é. Este poder avassalador da ciência é um desdobramento natural da filosofia, onde ela como ciência morde o próprio rabo, porque a filosofia, ao responder à questão que a funda e constitui, respondeu não ao “isto” da physis, ao “isto”do “ser”, à sua arché, à sua essência essencial, mas à essência essencialista- conceitual do ente; Não se ateve ao: “Que é isto – a árvore?”, mas simplificou tudo na claridade essencialista: O que é a árvore? (o ente árvore). E respondeu com a definição conceitual. São estas definições – citadas e recitadas religiosamente no altar dos conceitos – que fazem a sorte dos eruditos citadores e das disciplinas colonizadoras da physis, do originário da physis.

2ª. A que, além do ente diz respeito também ao ser e então todos os conhecimentos adstritos ao ente pulsam num outro horizonte e configurações realmente diferentes. Mas isto é impossível de acontecer e ser vigente, em todos os conhecimentos, e mais especificamente no que diz respeito à arte, se não se retorna, obrigatoriamente, às três questões fundadoras, não esquecendo, evidentemente, que há uma história do destino do ser.
Para a primeira atitude tudo se torna objeto de classificações conceituais, de pesquisas historiográficas, como se a história fosse simplesmente uma sucessão cronológica de causas e conseqüências, como se não houvesse memória. Não há história sem memória. Mas não é aquela que determina esta. Muito pelo contrário, é o acontecer desta que dá os possíveis sentidos e verdades do que como história se quer constituir como história. A história como memória nada mais é do que a história do sentido e da verdade do ser, porque nenhum ente se pode arvorar em sentido e verdade do ser. Porém, na memória Se dá destinalmente, como acontecer poético, a manifestação do que dando-se e se fazendo presente nos presenteia com o seu velamento. Por isso não basta procurar a coerência e coesão do que Se dá e presenteia como presença. É também necessário se perguntar e se abrir para o que Se dando como presente se vela e silencia. Quando perguntamos pela coerência e coesão do que no presente Se presenteia como presença, devemos saber o não-saber dessa pergunta, a não-verdade desse diferenciar, o não-ser desse dialogar. Como? Radicalizando e perguntando: Qual é a coerência e coesão do velamento,do silêncio? Qual é a verdade da coesão e coerência da não-verdade? Qual é a coesão e coerência do sentido do Nada do não-ser. Talvez aí possamos pensar a ciência na sua verdade lógica a partir da lógica da verdade, onde esta precede aquela como a não-verdade de toda verdade. Mas pode a lógica pensar a não-verdade? Não. Mas a não-verdade pode pensar a lógica, assim como o silêncio pode pensar a não-coerência e não-coesão enquanto a não-linguagem da linguagem.

A questão da arte
Por que “isto” é importante? Porque a importância não vem da ciência, mas do “isto” enquanto originário e enquanto arché, na pergunta que é a questão da arte: O que é “isto” – o humano do homem? Ou seja: O que é “isto” – a physis? O que é “isto” – o que permanece no fluxo das mudanças?
Estas são as questões da questão da arte. E só pensando-as podemos pensar originariamente: O que é isto – a arte?
Ou como nos lembra Bashõ, provocando o diálogo com Alberto Marsicano (esperando o nosso):

“...manifesta-se[no Haikai de Bashõ] o fluir contínuo e errante através da
eternidade, a compulsante unidade estabelecida entre o elemento efêmero,
transitório e mutável (ryuko) e a imutável e eterna essência (kyo):

gota de orvalho (transitório do ryuko)
ao sol da manhã (eterno do kyo)
precioso diamante (unidade)

(Alberto Marsicano, 1997: 16)

BASHO. Trilha estreita ao confim. Trad. Kimi Takenaka e Alberto Marsicano. S. Paulo, Iluminuras, 1997.